Um dia perguntaram-me: Se você tivesse que salvar um livro, que livro salvaria
para toda a eternidade? Ao que respondi: Estou salvando o livro HERANÇA DE
LÁGRIMAS. Escrito em 1871 pela escritora portuguesa Ana Augusta Plácido, que por
ter contrariado a moral da época, abandonou o marido e atirou-se nos braços do
romancista Camilo Castelo Branco, terminou em Cárcere. O escritor também fora preso na Cadeia da Relação do Porto, ao norte de Portugal.
ANA AUGUSTA PLÁCIDO escreveu textos para teatro, traduções de romances, colaborou
em jornais e almanaques, mas publicou apenas dois livros. O primeiro, escrito
ainda na prisão, publicado em 1863-LUZ COADA POR FERROS.
Eis a história do segundo livro: Passados alguns anos, já em Seide, encomenda o
escritor ao amigo, o Conde de Margaride, a edição limitada e não comercial do livro
que viria a chamar-se Herança de Lágrimas.O amigo contrata a editora Vimaranense,
que terminou por fechar as portas, e cerca de cinqüenta livros restam encaixotados no
sótão da casa aonde habitara o Conde. Entretanto, o prédio mais tarde, acabou por
tornar-se mercearia e alguém achou uma mina de cartuchos para enrolar açúcar e café.
Quando a caixa de livros chega às mãos da Família, restavam poucos exemplares completos
e em boas condições. Essas informaçoes nos é contada em MEMÓRIAS DO TEMPO DE CAMILO, por
Alberto Pimentel. Alguns biógrafos acreditam ter chegado à Família meia dúzia de livros.
O certo é que passado um século e meio, possui a CASA DE CAMILO um exemplar e,
segundo o Museu, em estado de conservação que requer cuidados.
Em Setembro de 2005, em um grupo de estudos, tive a nítida impressão de ver a foto de um homem
de idade e óculos pincenê. A imagem fotográfica estava impressa numa parede branca. Como se alguém
tivesse desenhado. Similar a como eram as fotografias no Sec. XIX. Detive-me por alguns instantes
diante dela. Eu não conhecia o rosto e nenhuma das pessoas presentes conseguia ver a imagem: grande
e preciso, estava um rosto impresso na parede. O fato das pessoas presentes na sala não verem a
fotografia me incomodou. Procurei não pensar mais sobre o assunto.
Era um grupo
de estudo e fiquei de ler o Livro MEMÓRIAS DE UM SUICIDA para ser comentado
posteriormente. Embora alguém presente na sala tenha aconselhado-me a ler outro
livro, pois este era considerado muito denso, insisti nessa escolha e iniciei a
leitura durante a semana. A lembrança do rosto acompanhava-me vez por outra.
Comparando fatos narrados no livro com detalhes biográficos do escritor, na
internet, fiquei conhecendo a vida pessoal do protagonista. O livro foi escrito
por Ivone Pereira, ditado pelo espírito do escritor, e narra a trajetória da
alma deste após o desencarne, por tiro que tirou-lhe a vida. Eu indaguei-me que estava na
pesquisa há mais de uma semana e não o conhecia. Ao buscar por uma
imagem na internet deparei-me com a mesma fotografia. Sim, era o mesmo rosto.
Era Camilo Castelo Branco, o romancista.
Continuei, agora com maior empenho, a
remontar a estória biográfica de um dos maiores escritores da língua portuguesa
do Século XIX. Na minha busca em sebos e livrarias, chegou-me às mãos em 2006,
um exemplar da primeira edição do segundo livro de Ana Plácido - HERANÇA DE
LÁGRIMAS. Continuei a busca bibliográfica e mergulhei no cotidiano da famíia, da
histórias de fugas do casal e tantos outros enredos reais e romanescos. Os
livros que li: O Segredo de Ana Plácido de Teresa Bernardino, o Romance do
Romancista de A. Pimentel e muitos outros acabaram por revelar-me que o pequeno
livro escrito por Ana, que eu possuía, era uma raridade. Eu deveria levar o livro
a Portugal, foi a única explicação que encontrei para ter visto a fotografia do
escritor. E assim fiz.
Não sei se efetivamente salvei um livro. A obra foi doada
em 24 de de 2007 à Biblioteca Nacional, em Lisboa posto que o MUSEU CASA DE
CAMILO já possuía um exemplar, aquele requerendo cuidados. Retornei a Portugal o
que lhe pertencia. Salvei possivelmente o último exemplar perfeito, da primeira
edição do livro Herança de Lágrimas.
Os vestígios de Ana e Camilo em mim serão
sempre como digitais do espírito. Provavelmente temos laços dos confins da
eternidade. Que personagem real minha alma foi na vida de dores e lágrimas
destes escritores oitocentistas? Um filho, um bom amigo, um
desafeto? Aquele livreiro que negou-se a negociar uma edição, mesmo diante dos
percalços financeiros da família? Nunca vamos saber. Provavelmente nada disso é
importante. O que sei, é que quando alguém disse que eu fora escolhida
para a entrega do livro, pensei que isso incluiria gastos e que de algum modo eu
deveria me preparar para as despesas. Então, inscrevi-me no Concurso Literário
Rachel de Queiroz. Escrevi uma narrativa ficcional sobre a Camilo - CEMITÉRIO DE ESTRELAS e um poema inspirado em Ana Plácido. O conto falava das consequências
para os personagens que viram-se órfãos, após a morte do romancista e sobre o
incêndio que ocorrera na casa alguns anos depois. Coloquei toda minha alma no
conto. Foi necessário filtrar a mensagem, escrevi e o reescrevi muitas vezes, pois era difícil passar ao leitor todos os sentimentos prévios que envolvia a
narrativa. Uma amiga querida me ajudou. O conto foi premiado, mas premiação em
dinheiro foi dada à Poesia MEMÓRIAS BRANCAS em homenagem à escritora. O prêmio
monetário facilitou-me a viagem ao Velho Mundo para cumprir a tarefa de entregar
à BNP o exemplar do pequeno livro. Paguei as despesas da viagem e, claro,
aproveitei para conhecer a Torre Eiffel. Paris? È linda! Ulah, lah!!!
Nota; FOTOGRAFIAS
O livro foi adquirido de um camelô na rua da Lapa no Rio de Janeiro, empilhado no chão misturado a tantos outros livros antigos. Não era o último capítulo desta narrativa, entregar o exemplar do livro, pois em 2013, chega-me ás mãos um exemplar do primeiro livro da escritora LUZ COADA POR FERROS. Neste exemplar há uma fotografia da autora colada na primeira folha. Lembro-me que a primeira vez que contactei o museu em Famalicão, para falar de um livro oitocentista, a primeira pergunta feita foi se havia uma fotografia na primeira página. Esse livrinho com
mais de 160 anos resistiu ao tempo e deve ir para o Museu do Escritor.
Sempre causou-me curiosidade porque a escritora usava tantos pseudônimos. Entre eles descobri ANDRÉ VIDAL DE NEGREIROS . Ela alega que em uma aula de história , conheceu o personagem e se encantou pela figura no livro, pela história, pela pessoa de André Vidal. Paixão ás primeiras linhas. Fiz uma pesquisa sobre ele e cheguei a um personagem da História do Brasil fascinante. Mergulhei nesse atalho como se encontra um buraco na parede e se chega a um novo reino. Havia uma Ana na vida dele. Isto deu um romance em gestação que juro terminar.
Por fim quando
estive em visita ao Museu Casa de Camilo em 2007, deparei-me com a fotografia. A
mesma que eu vira abrir-se gradualmente à minha frente. Desceu-me um arrepio na
alma. O problema é que as vezes minha alma dá saltos.