dire

dire

CAMILLO CASTELO BRANCO

 CEMITÉRIO DE ESTRELAS
Eu inclinava o peito crivado de dores sobre uma banca para ganhar, escrevendo e tressudando sangue, o pão de uma família. A luz dos olhos bruxuleava já nas vascas da cegueira. E eu escrevia,  escrevia sempre."
 Camilo Castelo Branco

PRÓLOGO - O ROMANCISTA

Seduzir, o grande desafio dos que escrevem. Manter a atenção do leitor para que este visualize a estória entre as linhas do texto. A alquimia das letras é feita por magos e loucos. Deliram esses homens e mulheres que nasceram sob a insígnia do ilusionismo. Fundam cidades em desertos, desenham batalhas em folhas brancas, preenchem de sons corredores vazios. As terras secretas da imaginação desses viajantes vivem povoadas de seres sem formas definidas, ainda sem nomes ou destinos. O escritor desdobra o espírito a esses lugares distantes e traz no bico da pena o protagonista. Às vezes, ele, o escritor, cessa repentinamente as viagens a essas terras e personagens sem estórias vagueiam como estrelas mortas empurrados pelo eco, ainda reluzente, do que poderiam ter sido.

Camilo nasceu em Lisboa em 1825. Exímio estudioso da Língua Portuguesa deixou como patrimônio literário mais de duzentos volumes entre romances, novelas e livros didáticos. Viveu exclusivamente da profissão de escritor e gravou para sempre seu nome na literatura do Século XIX. Sua vida foi recheada com os mesmos enredos de suas novelas, tento vivido os últimos vinte e cinco anos em Ceide, norte de Portugal. Irremediavelmente cego suicida-se com um tiro no ouvido em Junho de 1890. A casa em que viveu sofreu, anos mais tarde, um inexplicável incêndio. Os fatos a seguir narrados antecedem e retratam o dia em que a casa ardeu em chamas.
UM LIVRO

Contei hoje pela manhã setecentos e vinte e cinco vultos. Digo que são vultos porque a maioria deles dorme envolta em sacos de algodão e não sei dizer se são homens, mulheres ou meninos. Os cães disparam entre os canteiros, farejam e uivam como lobos. Os gatos, enrolados no próprio rabo, dormem a maior parte do tempo. Nós, que já não dormimos em sacos, e ainda habitamos este lado da fronteira sabemos, e isso é tudo, que além da bruma esparsa há uma terra ensolarada de onde se ouve vozes e risos. Ouvimos o ruído das patas dos cavalos e gritos de raparigas tolas. Sentimos cheiro de bolo assando, ouvimos o sino do mosteiro clamando os cristãos à missa. Às vezes, um de nós sobe na cerca e procura lá no céu o brilho da lua. Todos os dias nos visitam o cavaleiro e sua espada. A espada é pena umedecida em tinta a escolher a ermo, um ou dúzias de nós para conhecer a luz dos dias. Aquele que subira a cerca recebe cavalo e capa, galopa apressado à busca de seu destino. Noivas fogem, em madrugadas orvalhadas, de casamentos indesejados. Estendem as mãos, ao sonho de amor, por sobre o muro da janela.

Há meses o escritor não aparece e ficamos assim, malas prontas, a espera da estória que nunca começa. Estamos sentados sobre as malas enquanto os sacos dormem. Estamos aqui no limiar da espera e estendemos vaidosos as linhas desenhadas na palma da mão. Vimos a chama do candeeiro nos iluminar como holofote que varre a praia escura. O cavalheiro não desceu ainda sobre nós sua espada umedecida em tinta para nos empurrar de vez ao outro lado da linha. É bem verdade que os que vão nunca voltam. Só podemos ouvi-los e ver suas vidas ao longe, assim como vemos os sonhos. A estória se abre como pintura em movimento entre as frestas da neblina. Um dia os homens farão máquinas que projetarão vidas, mas isto é segredo que pertence aos sacos de algodão que serão acordados daqui a muitos anos. Estamos em sobressalto: há meses o romancista paralisou sua pena. As novelas com duelos, raptos, frades e celas, congelaram-se entre o tinteiro e a folha. Hoje ele apenas murmura pensamentos em versos. Ouvimos da última vez o grito na pouca luminosidade da lua:

- Eu choro sem remédio a luz perdida
Bem mais feliz és tu, que vês o sol!

Senti soprar no ombro esquerdo o arrepio. Os que estavam sentados sobre as malas, olharam o mar como náufrago que vislumbra ao longe o barco. Estávamos enfileirados e atentos quando o bico da pena passou sobre nossas cabeças e levou apenas dois de nós. Ouvimos em seguida o estampido do tiro.


NOITES DE INSÔNIA

Já não sabemos quando é noite ou dia. Não sei como foi possível, mas a carta chegou. Diz a carta que o escritor já não mora na casa e os livros estão todos empilhados em caixotes na sala de leitura. Depois do barulho do tiro, desceu sobre nós um mar de ébano e nunca mais o brilho da lua. Sinto as mãos, não mais as vejo. Nós que já tínhamos sido delineados pelo clarão do candeeiro ficamos assim entre a fronteira e o limbo. Por estarmos vivos apontamos a palma da mão aos céus a espera da gota de tinta que nos libertará. Decidimos permanecer juntos.


O BEM E O MAL

Os sacos de algodão empilhamos todos no canto do muro. Para eles não há esperança, mas nós exigimos nossas próprias estórias. Do outro lado, os personagens que habitam os livros estão reunidos à frente da casa e nos planejam a fuga. São personagens biográficos, feitos de realidade e fantasia. Só eles conseguem a comunicação por carta, os outros vivem a ociosidade de suas estórias. Na casa não há mais mobília, risos, cheiro de frituras. Há anos só o vento tece o ranger das portas, e não ritmiza o relógio na parede da sala. O assoalho solto confronta a luz da lua. Eles tecem no escuro a ponte de cordas que nos conduzirá à casa. O rapaz está parado do outro lado da ponte nos acena e grita:
-Todo amor, acreditem,  é de salvação!
Reconheço a roupa, o cabelo, o riso. É Simão Botelho de Amor de Perdição. Sim é Simão, o degredado de Lisboa que nos aponta a casa. A casa? É clarão em tocha a iluminar caminho. O brilho fulvo do fogo cobre rápido o chão e toma as janelas. Ouço o barulho trôpego dos pés que invadem a ponte e buscam ultrapassar a linha. Por breve instante penso na urgência necessária do fogo para clarear a trilha. As paredes se estreitam quando passamos e a fumaça nos sufoca. O barulho agora se mescla ao ruído do tombo da madeira e o desabar do teto. Quantos passos ainda precisamos para alcançar a escada que conduz à rua?
Finalmente estamos amontoados nos treze degraus da entrada, sujos e ofegantes sob a claridade do dia. O sol se estende sobre nossas cabeças e a brisa beija cabelo e fuligem. Os personagens das estórias voltaram aos livros, mas nós, oceano de estátuas sobre a escada não sabemos em que direção sopra o vento de nossas vidas. O redemoinha avança sobre o primeiro degrau e nos alcança. Sinto as ondas derrubando as dunas, o vento forte nos espalhando sobre o que restou da casa. Somos ferro, pedra, poeira e pó. Sopro divino a remover cinzas.

Luisa Ataíde