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terça-feira, 23 de novembro de 2010

O DESTINO DE ANN WARD ( conto)



O maior de todos os tesouros da infância é a fotografia que guardamos dela. Quando o crepúsculo silencioso dedilhar seus últimos acordes, talvez compreendamos porque ganhamos aquela casa, aquela família, aqueles dias. Relembrar as notas distantes de um canto esquecido de infância e o momento que recebemos a caixa, repleta de fundos secretos,  chamada: Destino.


Londres. Segunda-feira, 6 de julho de 1772.


Quando o coche deslizou sobre o primeiro arco da ponte do Rio Tamisa naquela manhã de verão, a menina olhou as embarcações espalhadas e julgou que provavelmente estava vendo a paisagem pela última vez. Desde que recebera a notícia da mudança para a casa dos tios na cidade de Bath, seu coração sombreara-se como gotas de cinzas turvam um jarro de água cristalina.
Naquela manhã, Átila, a Águia Real, como sentinela entre as torres da Abadia de Westminster era uma presença imperceptível. A ave de rapina buscava no burburinho de idas e vindas: o alvo. Na altura do quarto arco, as rodas de ferro pararam bruscamente e George, o condutor, comunicou -lhe com poucas palavras, que seria necessário afastar-se por alguns instantes.

– Não saia daí Ann,  eu voltarei rápido.
Como deixar uma menina de sete anos sozinha sobre uma ponte? O que o meu pai vai pensar disso, Emily? Indagou à boneca recostada ao banco.

Sinto muito... Foi o que pensou enquanto seus pés desciam em direção ao movimento lá fora. Deu alguns passos sobre a calçada e foi empurrada por um movimento brusco que por pouco não lhe arrancou o chapéu da cabeça. A menina fez um giro rápido para trás, a tempo de observar o pássaro grande coberto de penas verde metálico em contraste com os olhos amarelo claro. Por breve instante teve a impressão que a ave a olhou no fundo dos olhos. Segurou o grito de espanto e instintivamente levou as mãos à cabeça. A Águia seguiu em voo ascendente em direção às torres da Abadia, contudo, concluiu a curva e continuou o movimento, agora, de volta à ponte. O Pássaro descia em grande velocidade e foi possível perceber o volume que trazia nas garras. A inglesinha encolheu-se à procura de abrigo -  foi quando ouviu o baque sonoro da caixa arremessada sobre o teto do coche. A ave soltou o pacote e seguiu em voo para leste. Antes de seguir em linha reta, abriu as asas em compasso sobre as embarcações, e tomou finalmente a linha do horizonte. As pessoas em volta não pareciam se importar com a cena, a não ser a mulher parada na mureta da ponte.

– É seu o presente, disse a mulher, empurrando a caixa com a bengala em direção ao chão. Ann estendeu os braços e aparou a caixa de madeira.

– A senhora acha que a caixa foi deixada para mim?

– Possivelmente. É seu aniversário?

– Daqui a alguns dias eu e a Emily faremos aniversário.

A mulher parecia não ouvir a menina, absorta em localizar, em algum ponto da claridade do céu, um sinal do pássaro. Um alvoroço de imagens atropelava-se em algum lugar de suas lembranças. A cena pertencia a uma manhã perdida no começo do século sobre a antiga ponte de Londres: um pacote arremessado sobre seus pés. A velha senhora olhou as nuvens, as pessoas em seus muros secretos, a brisa empurrando a vida como as águas do rio.

Ann Oates Ward, a menina que em alguns dias completaria oito anos, abriu a trava da tampa e viu o que aparentava ser uma caixa vazia. Puxou com as pontas do dedo a cobertura e deparou-se com um envelope e algumas folhas de papel arrumadas ao lado de hastes finas de metal, terminadas em grafite. No envelope estava seu nome escrito, o que tirava todas as dúvidas do direito de propriedade sobre o objeto. De volta ao coche, Ann olhou a mulher sobre a ponte, os barcos em seu vai e vem infindo e segurou com força o presente contra o peito.

Ao fim do dia , quando a tarde estendia sobre a estrada seus últimos raios de luz, a condução atingiu as imediações da cidade de Bath e a sonoridade do Rio Avon. A menina ouviu o ruído  da água e apoiou o queixo entre os braços diante da janela, observando a espuma que escorregava entre as pedras de um rio que tinha pressa. À entrada da cidade havia uma ponte em construção e a carroça atreveu-se por caminhos estreitos e sinuosos. Filas de trabalhadores de volta aos lares seguiam ao lado das rodas de ferro e curvavam um aceno à passagem do carro. Enquanto a tarde recolhia a luminosidade, ainda foi possível ver um grande semicírculo de casas, em construção, que  lembrava a pintura do Coliseu romano. A cidade pareceu-lhe um formigueiro revirado.

Os portões da casa de Tomas Bentley abriram-se à passagem do coche com todas as lanternas do jardim acesas. A pequena hóspede, sua boneca e a caixa de madeira saltaram em direção aos degraus da entrada da casa. O ruído noturno se reduzia a pequenos pontos sonoros, minúsculos piados agudos que rodeavam as árvores e escorriam com a brisa úmida.

Não foi possível dormir na primeira noite e poderia dizer quantos riscos havia no telhado do quarto que descia em declive sobre a pequena cama que, agora, lhe pertencia. Escondeu a caixa atrás do armário de roupas e corria a ela nas tardes silenciosas. Um fato curioso descobrira: a caixinha, às vezes, lhe parecia funda, ou, por outras, totalmente estreita. Às vezes sua mão encontrava um compartimento desconhecido, como quando descobrira os pequenos pincéis na parte lateral. Correu os dedos em todo contorno e deparou-se com pequenos potes de pigmentos para pintura. É uma caixa de ilusionismo, concluiu. Passava os dias na biblioteca  procurando nos livros respostas sobre encantamentos e magias. Olhava o jardim da janela do quarto e a chuva que molhava as folhas largas dos canteiros bem cuidados. Olhava a lua abrindo seu lume sobre o telhado  e imaginava o riso dos meninos que moravam em alguma casa vizinha. Tinha sempre a impressão de ouvi-los e abria a janela às estrelas e aos pássaros noturnos. Ouvia o ruído dos arreios e frenagem de carruagem, e descia aos tropeços a escada em direção à porta. A visita paterna era como a caixa de tintas.

Era uma casa de paredes altas e moradores que dormiam cedo. Entre os corredores , Ann Ward construía um mundo de pensamentos sombrios e personagens invisíveis. Quando tudo parecia-lhe um imenso calabouço abandonado lembrava-se das cores da caixa, das folhas em branco e das hastes em grafite. O que a Águia quis lhe dar, naquela manhã sobre a Ponte de Westminster? Indagava-se a menina olhando as prateleiras da biblioteca que cresciam em direção ao teto. Extensas prateleiras repletas de livros antigos sobre as lendas celtas da Bretanha: uma terra destinada a ter inúmeros filhos enfeitiçados pela escrita.

Todas as respostas que teve que decifrar não estavam nos livros da casa, nas histórias que sua imaginação tecia olhando as estrelas da janela do quarto. A menina Ward, que, mais tarde, se transformaria na escritora Ann Radcliffe, construiu os primeiros enredos de suas histórias nos corredores sombrios da casa dos tios. Nos textos de suspense que anos depois seriam vendidos pelos livreiros além das terras bretãs,  havia as passagens secretas que só os olhos atentos podiam perceber. À menina, de imaginação prodigiosa, sobre a ponte de Westminster, ou no enredo de um sonho ao dormir, foi dada a capacidade de pintar com as palavras, de jogar um facho de luz sobre calabouços e sótãos. De falar de poesia e cores escondidas nas passagens secretas de uma caixa de tinta.

Luisa Ataíde




À memória de Ann Ward Radcliffe ( 1764-1823)


NOTA: Ann Radcliffe, escritora inglesa, nasceu em Londres.
 Primeiro Livro da escritora: em 1789 -. The Castles of Athlin and Dunbayne. O notável sucesso do livro definiu seu gosto por castelos medievais, heroínas acorrentadas, noites sombrias. Publicou dois anos depois - The Sicilian Romance e The Romance of the Forest. Suas obras mais marcantes seriam publicadas em 1794 e 1797, respectivamente: The Mysteries of Udolpho e The Italian.  Ainda no século XVIII a escritora traçou seu estilo audacioso para a época. Ann traçava enredos paralelos, iniciava a narrativa pelo final , depois contava origem da trama, - tudo como é feito no cinema moderno. Daí ser considerada a percussora do realismo fantástico. Ann Radcliffe desaparece em 1823 do cenário literário entre brumas e mistérios tornando-se uma lenda eterna da literatura que retrata o que há de mais profundo na alma humana: o medo.
 Fonte de pesquisa e Dados biográficos: - Obra póstuma da autora: Gaston de Blondeville na Corte de Henrique III v. 1  e o Livro : A vida de John Jebb. e Senhora  de Udolpho

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

ASHRAM


LUIZ MARTINS DA SILVA
Aos que me têm ungido na amizade

Haverá para nós um lugar, com beleza,
Onde há a luz com que dos dias nos tingimos.
Ora, são ondas, de inquietas marés de lençóis,
Ora é o próprio linho manso, estendido sobre a mesa.


Haverá de ser, para nós, recato, límpida fonte;
Propriamente, diria, não afeita ao tempo e ao chão,
Mas, sobretudo, incensário de vapores e címbalos,
Quando nos elevamos desde sinceras devoções.


Um lugar, limiar, divisa entre o pé e o horizonte;
Entre o que somos e o que ainda nem em semente;
Ânsia de vir a ser, pois não há futuro sem uma ponte;
Pois que a sejamos no deleite do que unimos para sempre


terça-feira, 16 de novembro de 2010

domingo, 14 de novembro de 2010

O ENTREGADOR DE LIVROS



“Não sei se a vida é curta ou longa demais para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido se não tocamos o coração das pessoas. Muitas vezes basta ser colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove. E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida.”


Cora Coralina


Diz o filme “Peixe Grande” que um homem conta suas histórias tantas vezes que ele se mistura a elas , e las sobrevivem a ele, e é deste jeito que ele se torna imortal. Manuel de Jesus Lima é um Contador de Histórias. Discípulo de Cora Coralina redigiu o primeiro livro da escritora. As tardes da Casa da Ponte, feitas de café passado no coador e doces cristalizados, ficaram para sempre nas águas do Rio Vermelho; nas calçadas de pedras de Goiás Velho. No caminhão de mudança para Brasília, apenas boas lembranças da cumplicidade literária entre o rapaz Manoel e Dona Cora. A reportagem de capa do Correio Braziliense, de 14 de março, nos fala como um homem pode salvar o seu sonho. Autor do livro A Guerra de Juquinha e outras Guerras, cuja edição foi custeada com as economias ao longo dos anos, não conseguindo vendê-los tomou uma decisão extremada: colocou um anúncio nos classificados doando-os a quem os quisesse, bastando telefonar. Desde então seu telefone não parou mais de tocar. Regularmente, Seu Manoel pega sua camionete branca e faz as entregas dos livros. Bibliotecas, residências, escolas. Quem pede, lá vai ele dirigindo ao encontro de um provável leitor de sua obra desconhecida. Provavelmente seus dois mil exemplares ganharão definitivamente leitores donos, pois neste país diz o dito popular: de graça, até injeção na testa. Numa linguagem de Guimarães Rosa, onde os personagens se misturam como numa novela de Garcia Marques, estão as aventuras do menino herói do Sertão. O ato de generosidade do escritor é, antes de tudo, um protesto às editoras nacionais que se apropriam do maior percentual dos exemplares vendidos. Manoel, servidor aposentado do Tribunal de Justiça, nunca deixou o exercício da escrita e isso o diferencia dos outros senhores de cabeça branca que cruzam por ele nas trilhas da caminhada matinal. Cercado por uma legião de personagens imaginários troca com eles inesgotáveis diálogos. Para o mundo, caminha pelo parque um homem solitário, um homem de poucas palavras. Na verdade, um escritor nunca está só. Na verdade, um escritor tem a divindade nos dedos ao criar pessoas, escrever estórias e decidir destinos. Seu Manoel, o Jovem Senhor Contador de Histórias, já não é tão desconhecido assim. Por certo, salvou o sonho ao aproximar livros e leitores. Ele pede a todos que ganharem um exemplar que o leia, divulgue, empreste, doe para que outros leitores conheçam as aventuras inusitadas de um menino que nunca jogou vídeo-game. O livro está em sua segunda edição. Eu telefonei e ganhei um, e digo que tem tudo para ser um best-seller. Contato com o escritor? 8404-9,,,. Só para quem gosta de ler.
Luisa Ataíde
Da Antologia- Prêmio Literário Rachel de Queiróz 2008
Fotografia: Casa da Cora Coralina, Goiás Velho.

sábado, 6 de novembro de 2010

LETRA PARA FADO


Luiz Martins da Silva

Ah! A conquista, final de caramelo!
É até de melhor grado aquela inquieta ânsia,
De quem há muito espera na incerteza e na inocência:
Quando a verdade sabe a Lua, mas bem se faz de tonta,
Se de fato alguém nos amará ou não.

Ah! A prontidão dos que logo dizem sim,
Entre pompas de sinfonia, metais e querubins...
Desconfia. Até do caimento do vestido,
Do exagero de um decote, bem partido:
Presságios de antevésperas, leituras de sinais.

Ah! Minha fortuna, minha musa, meu louvor!
Será que essa tua languidez envolta de perfume
Não é o que resume a próxima carta do tarô?
A torre, o diabo, o louco, o enforcado...
Depois da anestesia, quem vem não é a dor?

Todavia, que te apresses, a demora é uma esfinge.
Melhor o não sabido, se saber é desventura.
Destino de quem ama é só um lance a ser jogado.
Quem há de querer abrir cortina do futuro,
Se o fado se canta bem é de olhos bem fechados?