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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

OS SINOS DA IGREJA ( CONTO)



" Eu tinha exaltado a minha imaginação de forma a realmente acreditar que em torno de toda a casa e do terreno flutuava uma atmosfera peculiar a ambos e à sua vizinhança imediata – uma atmosfera que não tinha afinidade com o ar do céu, mas que se havia evolado das árvores senis, das paredes cinzentas, do pântano silente – um vapor pestilento e místico, pesado, inerte, mal perceptível, cor de chumbo. .."    A Queda da Casa de Usher, Edgard Allan Poe



As janelas vizinhas fecham-se bruscamente às noites de quarta-feira . O baque  das portas e janelas de madeira é o único som no caminho da noite. Apenas cães passam em frente aos degraus da pequena escada que levam à porta da casa de arquitetura antiga. As luzes apagam-se pontualmente às nove horas e os moradores dos prédios vizinhos dão às costas e ampliam os sons de fritura nas cozinhas . É como um canto alto quando as luzes se apagam . O sobrevivente do escuro canta para espantar o medo - o mais alto que sua voz alcança. Assim fazem os moradores: ligam o noticiário da noite e fritam carnes e ovos. Falam do trivial do dia, do atraso do ônibus, do preço das frutas. Todas as atenções mais profundas estão nas luzes que se apagam às nove horas, mas todos os ruídos tentam ignorá-las.

O Pêndulo e o Calabouço

No interior da sala, apenas o dedilhar distante de um piano inunda o ambiente azulado. Homens e mulheres ouvem a música imersos no turbilhão de caminhos que abrem-se ao redor da mesa: o rio, o barco, uma estrada de terra. Cada um escolhe uma direção. A mulher , por sua vez, para diante de uma porta entreaberta . Olha a parte de cima para onde se ergue o portal extremamente alto e largo. Ouve os sinos mesclando-se ao som do piano . As notas pulam uma a uma como se partissem para dar lugar ao badalar dos sinos. Empurra a porta apoiando toda a força no pulso da mão direita. Adentra ao salão da Igreja. É um espaço amplo, quase oval com dezenas de bancos espalhados. O teto sobe arredondado afunilando-se ao que pode ser a entrada das torres. A catedral ! É a imagem que seu coração aos saltos reconhece. Está em Diamantina, na catedral de Santo Antônio. Conhece cada canto da igreja de sua infância. Não há santos no altar mor e vazios estão os altares menores que  espalham-se nas paredes. Os muros que sustentam a igreja perdem -se na claridade que desce do centro da sala e inclina-se como uma espada de poeira e luz. Caminha em direção ao último banco e ao homem de terno escuro curvado sobre as pernas. Observa o traçado do terno, o laço que deveria ser a gravata, observa as botas.

_Senhor, posso ajudar?

O homem levanta o rosto e crava-lhe o olhar. Ela pensa por um instante conhecer a fisionomia: o formato das sobrancelhas, a testa acentuada, o cabelo. O Homem parece ouvir os sons finais dos pêndulos. Levanta os olhos ao teto e segura o queixo.

_ A Senhora  sabe há quanto tempo vivo nestes bancos e ouço o barulho das asas, o som ensurdecedor dos sinos? Quanto? Por acaso  tem ideia?

_ Provavelmente muito. Fala, observando a roupa do homem.

_ A Senhora sabe que se eles me encontrarem terei que correr para os muros de outra igreja? Eles odeiam igrejas, geralmente não entram.

_ Por que o Senhor não tenta conversar com eles?

_  Inútil, eles não querem conversa. Reclamam de mim, a Paz! !É possível compreender isso? Eles dizem que eu lhes tirei a paz. Alimentei o tormento de suas almas com o peso dos meus versos, de minhas palavras.

- O Senhor faz versos?

_ Eu achava que sim. Hoje não resta muito, o grande escritor se foi. Com o tempo passei a compreender os poços profundos que construí com minhas narrativas. Suicídios, adorações nocivas, leitores que se identificavam com meus enredos tecidos no liame da morte. Nunca leram uma palavra de alento, uma história que desse vida a um pensamento bom. Nada. Todas as madrugadas soprei o clarim ,  aliciando-os  ao exército das trevas. Pisavam nos pés um dos outros, cortavam as próprias mãos , feriam a pele do próprio rosto. Os cânticos foram sempre  gritos incessantes dilacerados pela febre. Marcharam voluntariamente para o desalento ao som funesto de meus versos. Em minhas aldeias escuras, edifiquei casas sobre o pântano do medo. A droga  não é tragada,  não é líquida ou gasosa , mas a perfeita invasão dos sentidos. Corre na pele e cava sulcos em direção às veias. Engana primeiro a visão, entorpece o olfato. A  língua cresce dentro da boca e impede o grito. Os dentes sangram sempre, e um som ensurdecedor é criado de acordo com a agonia individual . Os olhos não encontram as saídas e  resta-lhes o calabouço , as correntes, a prisão. Ouça ! É o grasnar das aves sobre as torres da igreja. Vestem-se com as asas dos pássaros, mas são eles, eu sei que são...

_ Há uma escada do seu lado direito, diz a mulher. Podemos chegar ao pátio da torre sem sermos visto, o ar puro vai te fazer bem.

O Homem aceita a mão estendida e caminha ao lado da mulher. Percorre o espaço que antecede a saída ao pequeno pátio . As aves estão enfileiradas do outro lado - petrificado exército de ébano. O homem olha a noite, os pêndulos do sino já não cantam, as paredes altas das torres são muros inertes. Olha o céu. A noite é clara e o tapete de pontos iluminados cobre-lhe a cabeça.  A mulher segura-lhe a mão e ele ergue devagar os olhos à paisagem noturna.  Por breve instante observa. Sente a brisa leve tecendo delicados riscos entre os fios dos cabelos. Sente o silêncio respeitoso das horas e a umidade que se estende sobre os telhados das casas beija-lhe timidamente os lábios. A cidade, seus sobrados e ladeiras dormem.

_ Veja, não há mais ninguém , todos se foram.

O homem olha o canteiro de casas espalhadas , o contorno das portas que na pouca claridade  seus olhos  esforçam  receber.

_Não há nenhum motivo para o Senhor se esconder nos porões, nas igrejas... mais ninguém o procura.

_ Para onde foram?

_ Para suas vidas!

- Se voltarem?

- Se voltarem, dê-lhes toda a poesia que não conhecem. Fale da alegria e das canções. Que depois das noites escuras e tormentosas há muita lama para limpar e muito trabalho a fazer, Que suas asas podem lhes dar voos imprevisíveis, que é preciso viver e também sonhar. Que a boa sintonia mental é como  música : é preciso ouvi-la e seguir. Diga-lhes que  o perdão é necessário em nossas vidas como flores são necessárias aos jardins. Casas sem jardins são tristes e precisamos cuidar deles  todos os dias. Somos todos , jardineiros do mundo. Dê-lhes boas palavras, bons livros, boas histórias.

_ Só isso será suficiente?

- Vai ajudar muito.

- Quando poderei fazer ?

_ Não sei exatamente quando, mas quando for possível, esteja pronto e não fuja do necessário. O que já  foi feito é irremediável, mas todos eles cruzarão sua vida de novo e a maneira mais fácil de influenciá-los será através do que mais gosta : de sua imaginação. Ela  estará  presentes em livros , teatros, em músicas, e em outros caminhos que o Senhor ainda não conhece . No fundo serão histórias, suas histórias.

O Homem olhou em volta e não havia mais a mulher, o burburinho das aves. Apenas ele e a vastidão de pontos luminosos que circulavam o piso da torre da igreja e cintilavam ao seu redor como cristais iluminados. Estendeu as mãos e pegou um dos pontos e o colocou no bolso da camisa. A pequena luz escorregava como bolinhas de mercúrio. Continuou a brincadeira de persegui-las e não percebeu que elas trançavam riscos contínuos por sua silhueta até se confundirem em um formato único. Lá embaixo a cidade amanhecia com suas ladeiras e sua gente.
Luísa Ataíde


NOTA do Blog:  - A estranha morte de Edgar Allan Poe

A Biografia De Edgard Allan Poe é repleta de mistérios, em especial a parte que refere-se ao seu desencarne. Encontrado inconsciente numa vala de rua, ficou   hospitalizado por uma semana. Em seu delírio narrava a visita de um enigmático Sr. Reynolds, que teria vindo buscá-lo e cobrar-lhe todos os desatinos da vida desajustada. Segundo pesquisadores, Edgar Allan Poe passou as últimas horas de sua vida numa taberna e entrou em coma alcoólico , o referido visitante só  foi  visto por ele. Alguém  o encontrou desacordado, e  em suas roupas um endereço e foi assim possível comunicar à família o paradeiro daquele que era um dos maiores sucessos literários da época.  A causa real de sua morte não foi esclarecida e teorias conspiradoras diversas foram escritas, filmadas e divulgadas pelo mundo.
Entre 2000 e 2001 foi resgatado em um centro espírita  no Brasil o espírito de Edgar Allan Poe. Segundo a experiência narrada, o escritor após o desencarne no meados do século XIX permaneceu fugindo daqueles que ele passou a considerar os seus algozes - os seus próprios leitores. A legião de espíritos atormentados consideravam-se influenciados negativamente  por seus contos de terror: levados ao vício, ao suicídio, à loucura. O espírito disse que um dos poucos lugares que ele conseguia paz era no interior das Catedrais.  e por mais de um século vagou  por diversas delas, por todo o mundo , até ser atendido por uma médium brasileira . Segundo o relato da médium que o socorreu,  ele ,  como todos os outros escritores góticos, firmou compromisso de na próxima experiência carnal usar a criatividade para melhorar a sintonia espiritual do planeta.  O texto acima foi baseado em tal relato.
Luísa Ataíde.

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