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domingo, 7 de fevereiro de 2010

CLARA CLARICE


Foi quando percebeu que só tinha nas mãos cacos, que eram tão pequenos que não podia emendá-los. Foi quando percebeu que a luz que abre os dias é a pura claridade dos dias e o que mata sede é água. Foi como acordar lúcido e sujo numa calçada. Diante de uma saída tão estreita, acabou concordando que a realidade tinha sua fatia sem matéria. Ela não: tinha um rosto, cabelos, fome e sede. Fome e sede... O pior era que o tempo passava.
Resolveu não mais sair de casa e a viver num estado de desistência. Na calma de nada entender trancava gavetas, portas e janelas. O que não convivia bem consigo, era não se achar de confiança e quase sempre não caber em si. Sua felicidade consistia em ter um sentimento secreto de inexatidão. O dia que tudo lhe parecesse matemático, teria a impressão cômoda dos dias. Constatou então, que colocavam um fim fora de lugar. Na verdade amava ter sido dois. Julgou que se fosse a outra parte seria mais fácil; contudo sabia que não sendo o lado feminino da história, jamais alcançaria esse estado de inquietação, de querer saber o que um homem sente. Eram territórios sem fronteiras.
Estava de través, como se qualquer outra posição a desequilibrasse. Sabia que não poderia permanecer por muito tempo assim, esse estado de alvoroço anestesiava e tirava-lhe o sono. Passou a viver num estado de Desistência. Da desistência chega-se à loucura. A loucura é uma canção sem voz.
Por muito tempo, sua única ligação com o mundo era o rapaz da mercearia que às Quintas-feiras trazia as verduras.
-Dona Clara! Gritava do portão.
Também aconteceu: "O tempo pôs-se a correr, a correr, a correr, e o mato cresceu ao redor, ao redor..."
Ela era por liberalidade sua própria feiticeira.
Aí, vem o dia que a maior das artes humanas vence: A Sobrevivência - estado latente de defesa. Até ali, não ter certezas era o fruto que carregava em silêncio. Com habilidade mestre , colocou-o sobre a mesa e o partiu, como se procurasse a menor das células. Embuída que estava do mesmo sentimento que Deus teve no dia que resolveu fazer o mundo, abriu as janelas da sala.
A umidade da casa atravessou a varanda.
L.A

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Canção aos olhos e ouvidos de Sônia Schmorantz




BRINCAR DE RIMAR

Sônia Schmorantz



Eu quero qualquer coisa mágica,
qualquer coisa azul,
qualquer forma de ser feliz.
Não quero acordar cedo,
quero prolongar o sonho
mesmo
que a história seja trágica.
Não quero sonhos falsos,
Não quero destino já traçado,
Não quero uma vida básica.
Não quero restos ou pedaços
Não quero olhar o relógio,
Não quero um tempo sádico.
Quero valer um mar azul
uma estrela na varinha de condão
um poema de efeito mágico,
que seja fácil, que seja simples,
nem litúrgico, nem letárgico,
mas que fale ao coração…




NOTÍVAGA

Sônia Schmorantz


Sou notívaga, perambulo nas madrugadas

como as corujas, empertigadas, em cima dos muros.

Ouço os sons da madrugada, os que estão fora e
os que tenho dentro de mim.

Silêncios quebrados por sons de pássaros noturnos,
pessoas que passam, chave na fechadura, criança que chora.

cortam a madrugada o choro dos amores mal resolvidos,
Os sonhos ainda não vividos, o som de risos perdidos na memória.

A madrugada está cheia de sons, música transcendental, natural
que não precisa de cordas ou teclas, vem no assobio do vento
ou nos acordes dos pingos de chuva na velha calha.

Não sei que hora o relógio marca, sei que estou acordada,
que o poema não deixa de ser uma oração silenciosa,
será que Deus ouve melhor nessa hora?

Resta depois esta vontade de chorar diante da beleza,
Resta esta súbita saudade de tudo e de nada,
até que os sons se esmaeçam enternecidos no sono
que finalmente chega…

Nota : Textos e fotos do Blog visual e poético de Sônia Schmorantz
Vale muito conhecer: ILHA DA MAGIA

domingo, 31 de janeiro de 2010

em M ovi men¬t o



DOMiNGOS sÃO rios de risos em sonhos
curvos, zonsos, fundos.


São cataVentos coloridos
vagos, inúteis, sURDOS.

dOMINgOS cheiram a maçã e missa
vagas lembranças de dias sem sol.

à TARDE, apontam o trilho ligeiro dos dias
Zunem versos roucos no ouvido

Abrem os riscos contínuos na estrada
distorcem o contorno das folha nas árvores.

SAL_ tam os muros secretos dos dias
Dos dias que chegam depois de amanhã.

Sunday, sundAY , CAdê você?

L.A

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Luzes e Caminhos


Luiz Martins da Silva

São tantas metáforas
Que se fazem aos caminhos,
Que andar nem é tino
É alegoria de mirar.

Caminho, camino, caminno,
Senda, sendero, chemin,
Caminito, trilha, vereda,
Serventia de andaluzes.

Lâmpada, lamparina, archote,
Lanterna, tocha, fósforo,
Única brasa que seja,
Quanto mais raio, corisco.

Lua, estrela, via láctea,
E ainda que seja a noite, nua,
Espesso breu dos navegantes
Faíscam pedras nos cascos os rocinantes.

E que aos mortos não se neguem lumes,
Pois morrer será a própria eterna treva.
Que se lhes acendam velas, candelabros,
Fileiras ardentes, vigílias de castiçais.

Mas, mais que todas as luzes acesas
São os olhos das musas os grandes sinais,
A nos guiar qual do sol as labaredas,
Pois facho maior que do amor não há farol.

Sobre o autor: Luiz Martins da Silva nasceu em Nova Russas (CE), em 03/09/1950. Em Brasília desde 1970; formado em Jornalismo e mestre em Comunicação pela UnB; doutor em Sociologia (UnB/Universidade Nova de Lisboa); jornalista desde 1975 (Jornal de Brasília, O Globo e Veja, entre outros). Professor da Faculdade de Comunicação da UnB, desde 1988; e pesquisador do CNPq, desde 1996. Participação, entre outras, da antologia Poesia Jovem – Anos 70. Integrou a Geração Marginal.
Bibliografia: Rua de Mim; Comigo Foi Assim; Brasilinhas; Breviários; e Realejo. Foi um dos organizadores da antologia de poesia Águas Emendadas (1977). Autor de vários livros e trabalhos acadêmicos na área de Comunicação.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A ETERNIDADE


de Arthur Rimbaud


De novo me invade.
Quem?
A Eternidade.
É o mar que se vai
Como o sol que cai.

Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.

Das lides humanas,
Das palmas e vaias,
Já te desenganas
E no ar te espraias.

De outra nenhuma,
Brasas de cetim,
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.

Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência,
Suplício seguro.

De novo me invade.
Quem?
A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.
Tradução: Augusto de Campos

Gentilmente enviado por Osmar Oliveira Aguiar

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

ABISMO DE ROSAS







Américo Jacomino, o Canhoto, compositor e instrumentista, nasceu em 1889 . Brasileiro, filho de imigrantes napolitanos, nunca freqüentou escola. Desde garoto interessou-se por violão, que tocava, mesmo sem inverter as cordas, na posição de canhoto, o que deu origem a seu nome artístico. Aos 16 anos começou sozinho a aprender cavaquinho, época em que já tocava em serenatas.

Em 1907, durante uma serenata no bairro da Mooca, conheceu o cantor Paraguaçú, com quem começou a apresentar-se em cinemas, circos e restaurantes.
Em 1913, já conhecido na capital paulista como bom violonista, gravou pela primeira vez, na Odeon, na série 120.000, a valsa Belo Horizonte, a polca Pisando na mala. Compôs aos dezesseis anos Abismo de Rosas, clássico do violão brasileiro.
Já em 1916 gravou suas valsas Beijos e lágrimas e Acordes do violão, primeiro título de Abismo de rosas.
Gravou em 1918 os tangos Madrugando e Recordações de Cotinha. Na época da Primeira Guerra Mundial, compôs a Marcha triunfal brasileira .

Em 1919, foi convidado, a formar um trio com Viterbo Azevedoe Abigail, uma menina , para apresentações teatrais, em que Viterbo encarnaria o Jeca Tatu, famoso personagem de Monteiro Lobato.No mesmo ano o Trio Viterbo-Abigail-Canhoto estreou em São Paulo e em seguida excursionou por cidades do interior . Em dezembro foi para o Rio de Janeiro, dando um recital de violão no Teatro Lírico.

Inicia em 1920 a produção de músicas carnavalescas, embora continuasse a compor outros gêneros. Lançou, para o Carnaval daquele ano, Ai, Balbina e no ano seguinte Já se acabô (ambas com Arlindo Leal). Logo depois instala-se em S.Paulo, onde abriu loja de instrumentos musicais. Foi um dos pioneiros, ao lado de Paraguaçu, da Rádio Educadora Paulista, primeira emissora do Estado.
Em 1922 gravou a Marcha triunfal brasileira e regravou Abismo de rosas. Um ano depois gravou como cantor a Marcha dos marinheiros e no ano seguinte o samba Só na Bahia é que tem (ambos de sua autoria).
No ano de 1927, no Rio de Janeiro, participou do concurso O que é Nosso, patrocinado pelo jornal Correio da Manhã e realizado no Teatro Lírico, quando executou três músicas de sua autoria, a Marcha triunfal brasileira, Viola Minha Viola e Abismo de Rosas, vencendo o concurso e recebendo o título de Rei do Violão Brasileiro.
Em março de 1928 retornou ao Rio de Janeiro, gravando algumas de suas composições em solos de violão e cavaquinho, adoece e é levado de volta a São Paulo , onde vem a falecer.
Pesquisa: André A.

sábado, 9 de janeiro de 2010

JIDDU KRISHNAMURTI




" A verdade é uma terra sem caminho. Os homens dela não se podem aproximar por qualquer organização, por qualquer credo, por qualquer dogma, sacerdote, ou ritual, nem por qualquer conhecimento filosófico ou técnica psicológica. Ele, o homem, tem de encontrar a verdade através do espelho das relações, através do percebimento do conteúdo da sua própria psique, pela observação, e não por qualquer dissecação intelecutal e analítica."

Jiddu Krishnamurti


Filósofo e educador indiano ( 1895-1986)



Jiddu Krsinamurti nasceu no sul da Índia em 1895. Ainda menino, foi " descoberto" pelo clarividente Charles Webster Leadbeater como a pessoa que tinha a aura mais pura jamais vista por ele em um ser humano. Adotado por líderes da Sociedade Teosófica da época e apresentado ao mundo como o novo instrutor espiritual da humanidade, dissolveu a organização que fora criada em torno de si, que reunia aqueles que acreditavam na vinda do novo messias, devolvendo ricas propriedades que lhe haviam sido doadas, sustentando que não pretendia criar uma nova igreja, mas que seu trabalho era o de ajudar a tornar os homens incondicionalmente livres.

Ao longo de toda a sua vida, até seu falecimento em 1986, Krishnamurti viajou por diversas partes do mundo, tratando de temas de vital interessse para a vida de cada ser humano, questionando profundamente a estrutora de pensamento, do "eu" e dos condicionamentos enraizados em nossas próprias mentes.

Fonte: Centro De Estudos Krishnamurti - Brazlândia, DF, Brasil.


VIAGEM CÓSMICA



ESTRELAS DUPLAS
“Eu só queria te contar
Que eu fui lá fora e vi dois sóis num dia
E a vida que ardia sem explicação
Não tem explicação,
Não tem, explicação, não tem, não tem.”
- O SEGUNDO SOL - NANDO REIS


A aglomeração de estrelas formada pela grande nebulosa a Via-Láctea possui vários sóis. Entre esses diversos sóis, a maioria é como o nosso, cercada de mundos secundários, que iluminam e fecundam. Uns, como Sírius, são milhares de vezes mais magníficos, em dimensões e riquezas, do que o nosso, cumprindo assim um papel mais importante no Universo . Também os planetas , em maior número, são muito superiores aos nossos. É assim que um certo número desses sóis, é acompanhado de seus gêmeos da mesma idade e formam no espaço os Sistemas Binários. São as estrelas duplas. Ali os anos não mais se medem pelo mesmo período, nem os dias pelos mesmos sóis, e esses mundos iluminados por uma dupla luz receberam condições de existência inimagináveis pela maioria de nós que nunca saímos do pequeno mundo terrestre. Os efeitos prodigiosos de luz produzidos pelos dois sóis para os habitantes desses mundos , apesar da proximidade aparente , permitem a circulação entre eles, e ainda receberem alternadamente ondas de luz diversamente coloridas, cuja reunião recompõe a luz branca.

Zarias atravessou a ponte entre sua casa e a entrada principal da cidade , onde passava o maior período da manhã. Deu alguns passos e entrou no círculo claro. Neste ponto sempre caminhava com mais cuidado, pois a visibilidade era como de estrada em nevoeiro. Alguns passos e bateu o ombro em alguém que caminhava em sua direção.

_ Desculpe aí amigo!, disse o estranho.

Zarias parou por uns segundos e olhou o desconhecido. Subitamente observou que há anos não ouvia uma comunicação verbal e não decifrou em princípio o dialeto. O estranho continuou:

_ Por favor você poderia me mostrar a saída? Acho que eu me perdi.

Zarias sabia que conhecia a linguagem e estava diante de uma situação inusitada, dessas que acontecem a cada dez mil anos. Lembrou-se das lições de quando era criança, dos inúmeros idiomas e dialetos verbais que aprendera. Era hora de utilizá-lo.

- É..., um.. hã... Muito prazer, meu nome é Zairas eu vou ajudá-lo.

-Você pode me dizer porque raios, eu não estou enxergando nada, acho que bati a cabeça.

_ Eu também, não estou enxergando muito , saí de casa sem o devido preparo. Mas não se preocupe, siga-me . A ponte não é muito grande, logo estaremos do outro lado.

Quando chegaram do outro lado, o estrangeiro olhou tudo a sua volta, não acreditando no que via. O Céu tinha uma tonalidade rósea e em alguns pontos cintilavam corpos aqui e ali. Não eram estrelas, flutuavam no ar, sumiam e apareciam continuamente. Ou seriam ?

- Vem cá, amigo isto aqui é algum planetário. Olha faz tempo que eu não vou num...

- Não, este é um dos céus de Sirius.

_ E aquilo ali, parecem... dois sóis?

- São dois sóis. Acho que você caiu aqui por engano.

_ E você que dizer que eu estou em outro...

_ Você está em outro mundo. Não sei como veio parar aqui , mas com certeza sua estada não deve durar muito tempo . Na sua contagem penso que alguns minutos.

_ É... acho que eu estou dormindo e devo acordar em alguns minutos ..., bem já que estou por aqui que tal você me mostrar tudo então . ... Eu não disse meu nome. Meu nome é Zacarias.

- Seja bem-vindo Zacarias, mas... estou desconfiado de alguma coisa... Eu já vi contar sobre acontecimentos como estes. Veja... estenda seu braço à frente.

O estrangeiro esticou o braço e foi como atravessar uma cortina invisível. Sentiu a umidade do ar e a vibração sobre a mão. Viu um ponto de luz formando-se entre os dedos e puxou a mão rápido.

- Agora vire -se de costa, de onde você veio, e tente esticar a mão. O estranho obedeceu e encontrou resistência.

_ É vidro?

- É como se fosse; só que não se quebra , disse o dono da casa.

- Observe quando eu estico o meu braço, continuou. Atravessou com metade do braço a parede não visível.

- Observe, disse ainda, que eu não consigo atravessar a parede a sua frente, como você fez.

- Você quer dizer que estamos presos aqui sobre esta ponte.

- Não, eu quero dizer que você segue em frente e eu sigo em direção contrária.

- Cara, você quer dizer que eu vou pro seu planeta e você segue pro meu?

_ Parece que sim.

- Isto quer dizer que se isso não for um sonho, nós não voltamos para nossas casas?

- Com certeza..

- Eu vou te dizer uma coisa seu Zairas, só olhando o espetáculo no céu eu vou te dizer que seu planeta é fantástico.

- O seu, pelo que eu estudei, é belíssimo.

- E como eu vou me comunicar. Todo mundo fala a minha língua como o senhor?

_ Os que não sabem se esforçam. Vou lhe adiantar que o senhor terá muito o que estudar.

- Eu vou lhe adiantar também que as coisas por lá, aonde o senhor vai, são complicadas. Mas eu acho que o senhor se sairá bem.

- Faz tempo que recebi umas aulas sobre esse tipo de viagem. Vou procurar me lembrar durante o caminho. Boa sorte, Sr. Zacarias. Acho que o Senhor será feliz enquanto estiver por aqui.

_ Quer dizer que ainda vamos nos reencontrar?

_ Daqui a um tempo..

- Eu deveria alertar o Senhor Seu Zairas, mas acho que o Senhor saberá fazer as melhores escolha. Dê aqui um abraço.
Em pé sobre o fim da ponte , sob os sóis de um dos planetas da nebulosa, dois homens se despediam. O caminho à frente do desconhecido foi alargando-se e plantações de girassóis eram vistas ladeando a trilha. Ora ele tocava a parede à esquerda da trilha , ora à direita. A textura era de bolha de sabão, mas não se rompia. O desconhecido deu alguns passos e o imenso jardim de girassóis abriu-se a sua frente , não mais havia paredes laterais. Os sois sobre os girassóis criavam uma linha sinuosa lhe indicando a passagem. Zairas olhou o homem por algum tempo ir sumindo na curva luminosa. Inspirou fundo e não teve medo.
"Inspirado no capítulo - Uranografia Geral- do Livro A Gênese- Allan Kardec"

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A FLORESTA DOS ESQUECIDOS


Texto de Mauro D. Spinato


No extremo sul do Brasil existe uma terra de planícies sem fim, onde é possível andar dias sem encontrar uma viva alma. Os fazendeiros dessa região, não raro, desconhecem os limites de suas propriedades, tal é a imensidão daqueles desertos verdes
Pela posição da lua minguante e das estrelas, Taurino deduzia passar duas ou três horas da meia noite. Estava caminhando a mais de doze horas, tendo visto o último ser vivo pela meia tarde. Trabalhador de estâncias, domador de potros ariscos, não tinha paradeiro certo. Andava de fazenda em fazenda pleiteando serviço, pouso e comida. Acostumou-se atravessar as planícies de madrugada, quando a temperatura era mais amena. Os olhos estavam treinados na escuridão e mesmo em noites sem lua apenas a presença das estrelas garantia a luminosidade mínima para Taurino. Ao longe, numa depressão que imitava um pequeno vale, os olhos de Taurino vislumbraram uma tímida luminosidade. Parecia uma estrela caída na terra. Imaginando tratar-se de uma casa, dirigiu-se ao local. Um repouso àquela hora seria bem-vindo. No entanto, aproximando-se, constatou que a luz não provinha de uma lâmpada. Era branca, muito forte, mas não agredia os olhos. Vinha de um objeto, que ainda não conseguia definir a forma, cravado no solo. À medida que se aproximava sentia o terreno irregular transformando-se num tapete macio, coberto por uma espécie de musgo verde e aveludado. Taurino já estava próximo, mais ou menos uns vinte metros, mas ainda não conseguia definir o objeto de onde emanava tal luminosidade. Entre ele e o objeto havia uma pequena e estranha floresta de troncos disformes totalmente cobertos com o mesmo tapete verde que pisava. A direção contraria da luz transformava-os em criaturas fantasmagóricas, escuras e desesperadas. Taurino, que não era de sentir medo, sentiu um arrepio subir a espinha. Desviando, um a um, os fantasmas negros, finalmente conseguiu visualizar o local de onde vinha a estranha luz. Um grande disco, que na compreensão de Taurino devia ser de vidro ou cristal, aparecia pela metade emanando uma energia branca e leitosa, quase palpável. Nos muitos anos de vida, já havia visto muita coisa e escutado muitos “causos” mas nenhum era parecido com isto. – “ Será que isso são os tais marcianos?” - Depois de um momento de perplexidade, tomou coragem e tentou se aproximar, porém não conseguiu se mover. Espantado, Taurino viu seus pés cobertos pelo musgo verde e agora, brilhante. Por mais força que fizesse, não conseguiu mover um milímetro sequer. A massa verde subia silenciosa, alcançando os tornozelos. Ele sentiu seus ossos sendo penetrados e a vida e a sensibilidade que existia neles esvaindo-se rapidamente. O pânico tomou conta de Taurino; começou debater-se, urrar, gritar desesperado, sentindo sua vida petrificar-se centímetro a centímetro. Num último estertor olhou para trás e reconheceu na floresta de troncos outros que por ali passaram e ali ficaram, esquecidos. Outros que não tinham nada e nem ninguém para sentir-lhes a falta.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O QUARTO REI MAGO




Luiz Martins da Silva


Tanto se atrasou pelo caminho,
Perdeu da estrela o rumo
Era o Quarto Rei Mago.
Quando enfim, achou, o menino
Já era o Homem, na Cruz.

Pediu perdão a Jesus,
Pelo atraso e única pérola
Restante de tanto empenho
Pelos coxos e mendigos
Que socorreu pelo caminho.

Do Rei dos Judeus, no lenho,
Caída a última lágrima,
Cristal feito agradecimento:
“Em verdade me encontraste
E encontras a todo momento,

Quando amparas um irmão pobre
Ou a um desvalido ao relento.
Lá estarei, estrela-guia,
Do Mago o gesto mais nobre,
Aquele que me dá alegria”.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

RECEITA DE ANO NOVO



Carlos Drummond de Andrade

"Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre".

Gentilmente enviado por Keila Abreu

sábado, 12 de dezembro de 2009

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A CAIXA ( CONTO)


A coisa mais incompreensível do Universo é que ele é compreensível” A.Einstein

Bartolomeu era apenas uma fagulha transparente tremulando a alguns metros do chão. Às vezes, eram necessários dias de reabastecimento e a fagulha tornava-se apenas um ponto fixo com leve pulsar de luz, como qualquer estrela. . O rapaz nunca estava satisfeito com isto e gostava de ter pernas, braços e rir alto; o que não constituía nenhuma norma absoluta e assim o jovem Bartolomeu era visualmente: apenas o jovem Bartolomeu.

Subiu a escadaria do prédio e em pé ao lado do círculo, formado pelas colunas , olhou o salão que estendia-se alguns metros abaixo. O piso era transparente e com alguns desenhos geométricos em riscos. Olhou demoradamente o  vidro e não pôde distinguir nenhuma forma. A partir dali, o rapaz sabia que seria necessário retornar ao seu formato de luz e calmamente tirou os sapatos. Desceu os degraus em direção ao salão e seus pés escoaram, como água, pelo risco do desenho. Em alguns minutos havia apenas o salão vazio. Em volta das colunas pequenos canteiros de flores . As flores não emitiam nenhum perfume, zuniam baixinho o que parecia uma melodia. As flores indagavam-se por que aquele ponto luminoso não gostava de ser um ponto luminoso e era aquela figura comprida e estranha. O único barulho era a canção das flores.

No corredor, sob o piso de vidro, o rapaz recebeu a claridade do ambiente e misturou-se a ela. Outros pontos, como ele, deslocavam-se em todas as direções. Tentou observar formas e reconhecer rostos. Eram os velhos companheiros de sempre, de volta ao Hangar de pouso, entre um voo e outro. Alguns acenavam do outro lado, numa via de retorno. Bartolomeu via o ambiente como seu olho estava acostumado a ver. Observou que voltara a morfologia corporal e sentiu-se bem assim. Para alguns era um ponto de luz, para outros era o jovem magricela de cabelos desalinhados.
- Bartolomeu, temos notado o quanto tem sido difícil para você este trabalho em Hospitais e Clínicas.

_ Bem, na verdade isto de ficar atravessando paredes de quartos e não poder falar com as pessoas me deixa um pouco inquieto; mas , não se preocupe, eu como todos os outros quero um dia ser Querubim, e o que for necessário fazer, estarei às ordens.

- É necessário que você experimente todo o tipo de serviço, é uma maneira de descobrir sua verdadeira natureza. Ultimamente, percebemos que você tem usado a mesma aparência por muito tempo e então saiba que ela é sua definitivamente.. Se visto por alguém, será assim com este corpo e rosto.

- Nenhum problema Senhor, mas o que tenho mesmo que fazer?

- Preparar as caixas, Bartolomeu. Preparar as caixas e enviá-las a esta lista de endereços, antes do fim do ano.

_ O Senhor está  dizendo que eu fui promovido? De arrebanhador de moribundos a programador de destino? Não,  não se aborreça com minhas palavras, eu, na verdade,  sempre quis fazer este trabalho.

- Hum... é compreensível.

_ Não... bem,  desculpe, eu quero dizer que é melhor a esperança que a fatalidade.

_ Nenhum problema Bartolomeu, aqui estão as instruções neste envelope. Você prefere ler, não é mesmo? Provavelmente, se vivesse com sua forma luminosa, as instruções seriam absorvidas mais rapidamente.

_ Não quero ser rebelde, mas ainda não  me acostumei com isto de ouvir sem ter ouvidos, falar por todos os poros, de deslocar na velocidade da luz. Ah, eu ultimamente gosto de usar minhas habilidades primárias. Andar passo a passo, ver e sentir as pedras e plantas, ter um pensamento de cada vez.

_ Você sabe o que isto significa não é Bartolomeu?

_ Sei sim .

_ E que isto pode acontecer de uma hora para outra?

_ Eu sei, e quero apenas estar pronto,

O rapaz recebeu o envelope e o colocou no bolso da camisa. Abraçou o companheiro e saiu apressado. De volta, ao caminho estreito, observou os outros que chegavam, e acenou-lhes. Se pudesse, ia até eles e contava as novidades. Essa necessidade impetuosa precisava ser contida.
Sabia que os desejos que voltavam a aflorar em seu interior era prenúncio de viagem próxima e tinha a impressão que a coragem caminhava ao seu lado ,como uma irmã mais velha. Podia sentir as mãos sobre os ombros.

Quando retornou ao quarto, abriu o envelope e leu as instruções com toda a atenção possível. Sobre a mesa, havia centenas de caixas e deveria organizá-las. Algumas tinham mais de trezentos compartimentos, outras um pouco menos. Enquanto preparava as caixas, lia as instruções como uma bula de remédio, e indagava-se em que parte do universo elas chegariam. Os compartimentos tinham paredesflexíveis e quem recebesse a caixa poderia fazer dela o que quisesse: alongar ou diminuir a quantidade das divisões. Havia tinta para colorir e porções curativas. Um saco com pequena quantidade de substância, que conforme a mistura feita poderia promover danos irreparáveis, deveria ser colocado no centro da caixa. Redigiu um aviso de alerta em vermelho e colou sobre o pequeno pacote. Todas as caixas tinham um álbum de fotografia vazio , um rolo de corda e tesoura. Entendera que possivelmente era para construir ou desfazer laços conforme a vontade do receptor. Fechou a primeira caixa e abriu o envelope com o adesivo de numeração. Todos os números dentro do envelope eram iguais e não conseguia entender isso. Por que todos os números eram sempre o mesmo número? Dois mil e dez deve ser um número significativo para esta remessa, pensou. Colou o adesivo sobre a caixa e observou sua primeira tarefa cumprida. Olhou o papel colado na parede. O papel informava que seu prazo escoaria em sete dias. Às vezes, sentia-se fatigado e cada vez menos conseguia um relaxamento profundo e transmutar-se em fagulha luminosa. Era necessário um desligamento por horas: era o sono, lembrava-se disso de repente, como se fosse acostumado a dormir todos os dias.

O jovem aspirante a Querubim trabalhou até o limite das forças. O cansaço o desconectava de sua natureza espiritual e o levava em direção a um caminho novo. Restava-lhe ainda a última caixa e, pelo papel colado à parede, mais vinte e quatro horas. Suspirou aliviado, pelo menos poderia trabalhar a última caixa com calma e até ler o nome do destinatário. Prendeu a bula entre os dedos e leu . Era um nome de mulher: Analice era um nome que ouvira em algum lugar.

- Analice... murmurou andando pelo quarto.

Tentou lembrar-se por um instante o que o nome significava para ele. Revirou os pensamentos inutilmente. O endereço também não era conhecido. Colocou devagar os pequenos pacotes nas divisões da caixa. Havia um par de sapatinhos de lã a ser colocado ao lado da substância perigosa. Nunca vira um sapato tão pequeno e macio. Depositou o pacotinho com cuidado. Uma ponta do laço do sapato prendeu-se no botão da camisa e não conseguia soltar. Sentiu que o sapatinho começava a desfazer-se e isto exigia um cuidado maior. Já era madrugada e olhou para a janela de vidro do quarto ao lado da cama. Não poderia danificar nada que destinava-se a caixa. Não poderia cortar o pedacinho de lã preso à camisa. Pediu ajuda. Não sabia ao certo a quem dirigia o apelo. O céu curvava-se para dentro do quarto e espalhava as estrelas sobre sua cabeça. Havia a disposição da Nebulosa. Distinguiu os pequenos globos que formavam um anel no céu escuro e o planetinha pulsando a sua frente É o destino da caixa, pensou. È para lá que a caixa vai. Tentou olhar o planeta mais de perto e olhou o endereço entre os dedos. Distinguiu um bairro tranquilo: a rua ladeada de árvores. No fim da rua, uma casa de edificação antiga. No jardim uma árvore enfeitada com pequenos globos coloridos. No quintal ao lado havia uma casa semelhante. Sobre os degraus uma mulher olhava as crianças que corriam ruidosas por todo lado. A mulher apenas observava. Bartolomeu buscou a figura feminina por alguns instantes. Não reconheceu o rosto. Não reconhecia nada em volta. A mulher trazia nas mãos um pequeno lenço . Tentou olhar mais de perto o lenço que ela segurava com força. O tecido tinha uns pontos de linhas soltos na superfície. Não é um tecido próprio para lenços, pensou. Tentou ver mais de perto, em um exercício extremado de deslocar-se de onde estava. Era um lenço igual ao pequeno sapato que ele tinha preso ao botão da camisa. Recuou devagar e segurou o pano , com cuidado o desvencilhou do botão.
Lembrou-se do pequeno par de sapatos: estava lá, em algum lugar de sua memória. Sonhara com ele, brincara com ele e subitamente a mulher o tirara. Lembrou-se de tudo como se observasse uma fotografia em movimento. As imagens corriam pelo quarto, como um rio descendo sobre caminho de pedras. A mulher negara-lhe o par de sapatos. Precisou voltar pra casa e não sabia o caminho de volta. Vagou alguns dias por lugares desconhecidos. Sentiu dor e cansaço. Via seu corpo deitado no chão. Olhava, agora de longe; a mulher e o pequeno tecido azul. Não sentia amor ou ódio. Detinha-se apenas no olhar da mulher em direção às crianças da casa ao lado. Tentava segurar, de algum modo, as lágrimas que nasciam nos olhos dela. Queria gritar que a caixa com o sapatinho estaria de volta em alguns dias e que bastava querer abri-la novamente. Bastava querer. Fechou a caixa com delicadeza e colou o adesivo sobre ela: 2010 era o seu número de sorte. O sapatinho estava lá, protegido em algum compartimento e a mulher o encontraria. Deixou a caixa sobre a mesa e adormeceu. O cansaço tomou conta do corpo e antes de sumir na escuridão do sono, sentiu estar diminuindo , diminuindo e voltava a ser um ponto luminoso a alguns metros do chão. Sentiu-se conduzido para fora e misturou-se ao tabuleiro de estrelas. Era a viagem de volta. Não queria respostas se a viagem seria curta ou longa. Ia ser parte da mulher e um dia voltariam juntos. Por muitos ou poucos anos seria visto como Bartolomeu, o menino magricela de cabelos desalinhados. Sua natureza de Querubim fundia-se na natureza de menino. Poderia caminhar e observar as pedras e plantas. Cantar como as flores e a água do rio e... rir alto, o mais alto que seu riso quisesse.
Luísa Ataíde
Luísa Ataíde

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

ESCUTA INCONDICIONADA



JEAN KLEIN


Sempre que a escuta é intencional, a tensão surge, porque um resultado é antecipado, e este resultado é um produto, uma projeção da memória. A escuta incondicionada não tem fim na mente e, nesta abertura, todos os sentidos são receptivos. A audição não está mais confinada aos ouvidos; ao contrário, todo o corpo escuta com uma sensitividade sempre-expansiva até que você se ache na própria escuta. Um outro modo de dizer isto é que você não escuta mais, pois você é audição.
A consciência da quietude, do silêncio, pode surgir primeiro na ausência de objetos, como freqüentemente acontece na meditação. Mas, mais tarde, ela é mantida tanto na presença quanto na ausência. Esta consciência, que é escuta, é o fundamento de toda aparência, de modo que, mesmo quando em atividade, você é consciente da atividade e do ser.
A consciência de ser não é uma percepção, pois o ser nunca pode ser objetivado. Nós não podemos ter consciência de dois objetos ao mesmo tempo; não podemos ter dois pensamentos simultaneamente. Mas podemos ter consciência simultânea de nossa existência fenomênica e nossa presença, de nosso ser. Este não-estado aparece espontaneamente no instante em que cessa o produzir e o projetar.
Qualquer tentativa para produzir este não-estado na verdade nos submerge profundamente na relação sujeito-objeto. Há momentos em que alcançar o silêncio pode ser um benefício transitório, visto que uma ausência temporária de pensamento produz um estado calmo. Mas, permancer nesta relação sujeito-objeto, a qual é tudo que a ausência de pensamento é, exclui você de um silêncio mais profundo. A presença de um estado vazio pode inclusive ser um obstáculo; sendo energia em movimento, não pode ser continuamente sustentado. O verdadeiro silêncio não é nem movimento nem energia, mas quietude.

Editora Advaita