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domingo, 22 de maio de 2011

JURIS ET DE JURE (Conto)



O mar , asseguram os poetas, guarda o segredo dos rios. Esses , em obediência cega, entregam-se à sua imensidão.


As fotos envelhecidas em marrom e bege, espalhadas sobre os joelhos e o vestido, eram o que eu conhecida dele. As imagens não eram nítidas, mas podia vê-lo sentado na varanda da casa enquanto os olhos corriam além da curva dos dias. Os dedos magros torciam a palha do milho num movimento infinito das mãos. Em que país moravam suas lembranças ?
Os primeiros anos de infância já denunciavam o fascínio pelas estórias que os mais velhos contavam. Elas abriam-se a minha frente, como se as visse da janela do quarto. As casas não possuíam luz elétrica, e as estradas de poeira e pedra levavam sempre a casa de Seu Bento. Era homem de pouca leitura, o suficiente para ler a Bíblia pela manhã enquanto os filhos dormiam. Lia em voz alta como se quisesse que as palavras lhes chegassem ao sono. A casa cheirava a café e salmo.
Assim como um quebra-cabeça sobre a mesa, eu reconstituía uma casa e uma família que não vivera. Aninhava-me nas cobertas, entre os meninos, como se fosse possível estar ao lado de pai e tias. Podia ouvir por que Deus fez céus e terra e deu aos homens um coração bom. Sentava-me à mesa e recebia, também, o pão de aveia, dando graças ao Senhor. Tudo me era possível à medida que retirava da caixa de sapato as fotografias.
As pessoas chegavam cedo ou vinham nos fins de tarde. Havia sempre cadeiras na entrada da casa como se também fosse dele o ofício da espera. Com a mesma sabedoria que Deus deu a Salomão, decidia quantas sacas de feijão seriam pagas e se as cabras deveriam ficar aquém ou depois das cercas. Se dizia que o casamento era devido, cevavam-se os porcos e bordavam-se as toalhas. Como as estradas ainda eram trilhas naquelas terras de Minas e não havia pontes para cortar caminhos, os vizinhos entregavam seus conflitos a Seu Bento. Ele os ouvia pelo tempo que elas julgavam necessário . Alguns, por vez, alteravam a voz; outros , em tom resignado, diziam confiar em Deus. Após um breve suspiro, ele arqueava as sobrancelhas e definia novos caminhos às desavenças. As pessoas recebiam a decisão como se procurassem em terreno árido água fresca , encontrando sorviam o reflexo em água doce como recompensa. Assim, compunham-se os conflitos e arrastavam-se os dias deste lado do rio.
Seu Bento tivera muitas filhas, mas apenas um "filho homem" . O menino desde cedo se entendia mais com os cavalos e vacas do que com a natureza das mulheres. Gostava mais do curral que da sala da casa. Acompanhava a prenhez das éguas e os partos mais difíceis até o apagar das estrelas. Costurava asas e cortes profundos, acalmava e curava dores - queria ser Veterinário.
À medida que os anos corriam, as pessoas viam nele a continuação do pai, e assim esperavam que se tornasse o Juiz da cidade.Um dia a mãe entregou-lhe a melhor camisa, ainda morna da lisura do ferro, engraxou-lhe as botas e entre fardos de farinha, viu afastarem-se : a casa, o curral, as árvores pequenas que costeavam o rio e ainda as pedras que se alinhavam cada vez mais rápido à passagem do carro. Desde então, quando retornava nos feriados prolongados, corria primeiro ao curral e ali passava o melhor das horas. Assim foi na primeira vez e nas que se seguiram. Aos poucos passou a observar o curral das sombras do quintal, depois, da janela da cozinha. Os anos seguintes o encontraram olhando apenas da janela do quarto. Não mais.
A cidade transformou suas trilhas em estradas que se ladearam em casas e nas casas os homens, no acender dos lampiões, guardavam seus dias como pães dormidos em latas sobre o aparador. João Deodato formou-se em Direito.

Era homem de pouca conversa, se bem me lembro. Nem quando me entregara naquela manhã o pacote:

− Ana, é seu. Disse monossilábico.

Esperava mais que o pacote estendido. Retirei da caixa a boneca muito loira. Tal qual a moça do filme dei-lhe o nome de Miss Molly. Usava um vestido armado e um decote com rendas. O cabelo preso ressaltava-lhe o azul dos olhos. Fôramos juntos ao cinema e ele entendera o meu encanto com a heroína das diligências do Velho Oeste. Lembrara-se disso ao comprar a boneca. Era seu jeito de abraçar a filha.
João Deodato deu a todos o destino que lhe reservaram. Aos trinta anos era Juiz na cidade vizinha. Nunca entendi porque não trabalhava no fórum perto de casa. Nem porque minha mãe dizia que aqui ele era suspeito. Suspeito não era um desses homens que mal se vê o rosto e que se esconde atrás dos postes? Hoje, retirando da caixa todas as fotografias , vejo apenas um homem incomodado no terno escuro, como se os sapatos lhe apertassem os pés diuturnamente.

Todas as tardes eu sentava com Miss Molly no meio da escada e a cena que via era sempre a mesma. As mulheres aguardavam aflitas o telefone tocar. Ao primeiro sinal corriam do andar de cima ou da cozinha em pavorosa. Às vezes repetiam em eco uma das outras, aglomeradas ao redor do telefone:

− O juiz saiu do Fórum!!!

O telefone desligava. Elas aguardavam ansiosas a nova chamada.

Recomeçava o coro:

− O Juiz entrou no bar!!!
Sentavam-se espalhadas pelas poltronas da sala. Novo telefonema.

− O Juiz terminou uma garrafa!
Agora em aflição:


− O juiz subiu na mesa!

Hora de pegar o carro da família e correr para a cidade vizinha. À tardinha entravam arrastando o homem. Um homem desabado no tapete da sala. Quando saíam, eu o cobria com a colcha da cama e colocava sob a cabeça a almofada. Na manhã seguinte encontrava-o novamente recomposto na cadeira da cozinha. Os gestos eram curtos, tomava apenas o café escuro.

Um dia, uma das tias encontrou-me folheando os livros na estante da sala e comentou:

− Essa menina é muito inteligente, vai ser uma excelente professora!

Ele olhou-me do fundo dos olhos e disse:

− Só se você quiser.

Lembro-me sempre desta determinação tardia que, por não lhe ser mais útil, ele me presenteava Fiz um curso técnico de Botânica e abri uma floricultura no centro ao lado do cinema. Há no fundo uma sala de experimentos e estudos. Cultivam-se ali variadas espécies de Orquídeas.

Luísa Ataíde

Fonte:Prêmio Contos para Viagem − Volume dois, Editora Arte Literária, São Paulo, 2006, pp..61-64.

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