dire

dire

quarta-feira, 4 de abril de 2012

OS OLHOS DE TOMÉ (CONTO)



 “Tudo consumado, como era para ser.
  O céu soleniza-se, preparando soluços,
  enquanto nuvens rasgam de púrpura
   as vestes sanguíneas do crepúsculo...”
      Gólgota, Luiz Martins da Silva.


Imagine, um grande campo a ser plantado. Imagine que abaixo do que você vê, as sementes tentam romper o solo. Todos os dias você vai lá fora e olha o campo. Ele é um vasto terreno deserto. Nem uma simples erva balança sua folha ao vento. Uma manhã, alguém vem visitá-lo e, já da porta, olha o seu quintal. Abre os braços admirado com a fartura dos frutos das árvores. Puxa da terra folhas grandes e suculentas e enche cestos com hortaliças e maçãs. A abundância esteve todo o tempo ali e você não viu.


SEGÓVIA- ESPANHA


Julian Esteves olhou a  avenida de pedras e a arquitetura do aqueduto com seus arcos empilhados. Julian captou a imagem, para seu arquivo de fotos de diversos ângulos. Por alguns instantes pensou no que lhe dissera o guia da viagem. A construção feita pelos romanos diminuíra consideravelmente ao longo dos anos. Ainda é um espetáculo para ser registado, pensou, enquanto seus olhos eram invadidos pelas falanges de pedras.
A tarde misturava as cores dos vitrais às hastes da Catedral de Segóvia quando o rapaz cruzou as muralhas do claustro do Monastério. Subiu os poucos degraus do pórtico da entrada e olhou as colunas altas findadas no rendilhado bordado das abóbodas das naves. A hora do crepúsculo era um salto no silêncio entre o dia e a noite - a hora do zumbido dos grilos, da procissão das aves de volta aos galhos das árvores.
O cheiro adocicado do jardim deslizava pelos corredores vazios. Havia os arcos de pedra abertos à cidade murada. Seus pés estavam ali, na estreita faixa das janelas,  e podia sentir sob os sapatos os riscos do cimento. Ainda era possível captar a imagem na rasa luminosidade da tarde. Esgueirou o corpo entre as aberturas laterais e direcionou a câmera em direção ao que os olhos alcançavam: o contorno da Serra de Guadarrama. Mas , havia  o ruído que  vinha de dentro da sala,  curvou o corpo de volta e caminhou pelos corredores vazios. O silêncio sepulcral das paredes altas e os contornos dos anjos, focados pela réstia de luz que entrava pelos vitrais gritavam-lhe aos ouvidos. Mas o que exatamente parecia ouvir? Era um emaranhado de vozes e cânticos. Os sons batiam nos muros de pedras e deslizavam de volta entre os fios dos cabelos. Desciam em cascatas através dos pelos dos braços e pernas e retornavam às colunas em ciclos de ondas. Julian sentiu o ritmo forte do pulsar de seu sangue e seus olhos abriram-se como os cálices de cristal perfilados diante do altar.


A claridade abraçava as colunas de sustentação e saltavam gotas minúsculas de luz no piso do claustro. O rapaz caminhou em direção aos degraus diante do pátio de terra, aberto ao vento, ao fim da tarde. Pensou estar num cenário de teatro. Ali o terreno alto , a pouca distância, a enorme cruz de madeira fincada sobre o chão. Ao fundo,  um crepúsculo púrpuro numa tarde que sangrava luz. A partir dali, não conseguia caminhar em nenhuma direção, pois a imagem rodopiava ao seu redor abrindo o risco completo do compasso. Estendeu, num gesto inútil, a mão para alcançar. Havia o sangue escorrido até o chão onde formava manchas de vários tamanhos. O soldado usava uma armadura de ferro cuja parte frontal, mais clara, tinha riscos sobre o peito largo. Olhava para o alto, enquanto lançava ao ar frases de escárnio e desafios. Por breve instante, o Centurião olhou na direção da porta e pareceu ver o estranho. Julian virou-se bruscamente e estava de volta aos corredores de pedras. Buscou a sala mais uma vez e não encontrou a saída para o pátio de terra. Indagou aos frades, ao guia, às pessoas, onde estava a porta. Não havia nenhuma saída, nenhuma porta, nenhuma escada que conduzisse ao pátio. Percorreu diversas vezes o mesmo caminho. Não havia o pátio de terra.

Julian Esteves deixou Segóvia com as primeiras estrelas no céu e a impressão de estar entre o susto e a razão. Mas o que é a razão senão a realidade que nossos sentidos alcançam, pensou. A moça da poltrona ao lado viu entrar no ônibus um rapaz e sua câmera, provavelmente um estudante em férias e sorriu. O motorista aborrecido pela espera viu um turista chegar atrasado. As rodas dos pneus deslizaram sobre as ruas vazias e o rapaz olhou as muralhas da cidade  afastarem-se e sumirem aos poucos no retrovisor da janela. Ouvia o ruído, cada vez mais distante, das águas do rio que descia as encostas da serra de Guadarrama.

No jardim do Mosteiro, dois homens conversavam:


– Você parece preocupado. O que houve?
– Perdi minhas pedrinhas de luz, elas estavam aqui nos meus bolsos...
– Não se preocupe, mal nenhum pode fazer.
– Às vezes, elas dão a quem as encontra à ilusão de um salto de consciência.
– Uma consciência externa conectada com a sua consciência interior que se for elevada irá captar o que as paredes deste Templo produzem: a presença do Cristo. Lembra quando nós o encontramos na estrada de Emaús?
– Sim, nunca poderia esquecer, nós não o reconhecemos. Conversamos com ele, falamos da nossa desilusão em perdê-lo sem saber que estávamos diante do Cristo ressuscitado. Só depois quando ele elevou nossas consciência ao nível que podíamos contemplá-lo foi possível vê-lo.
– São os caminhos prévios por onde caminha a fé. A nossa percepção da realidade construída com nossas vivências. Se não percebemos a importância espiritual da realidade, se não nos abrimos a essa percepção, a nossa visão particular só atingirá a matéria. Enquanto persistirmos seremos céticos. Se nos abrirmos ao conhecimento já é o preparo da terra para a colheita. A Paz, a Saúde, A Alegria e o Amor, esta é a terra de leite e mel à nossa disposição. Uma colheita que pode começar com a boa vontade do conhecimento. Pois ninguém que se abre de perto à vida e aos ensinamentos de Jesus deixará de amá-lo.

A  lua abriu seu lume sobre um ônibus que desaparecia nas curvas das montanhas de Segóvia. Estendeu seu facho de luz sobre dois vultos que conversavam no jardim do mosteiro, sobre um aqueduto secular, de braços abertos aos visitantes da cidade. Espalhou as minúsculas poeiras cintilantes nos quatro cantos do planeta, misturando-as à atmosfera a ser absorvida pelos que naquele momento levantavam-se para mais um dia de trabalho, liam o jornal da manhã, atravessavam a cidade em seus carros apressados. Sobre os que batiam as mãos no peito da incredulidade, aos que soluçavam nos leitos dos hospitais. Aos que riam e cantavam pela simples razão de serem presenteados com mais um dia.

Luísa Ataíde

Nenhum comentário: