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terça-feira, 18 de outubro de 2011

O EXÉRCITO DE CHIAN ( CONTO)






  Imagine que o universo é uma imensa máquina giratória. Você quer ficar perto do centro da máquina – bem no eixo da roda -, e não nas extremidades onde os giros são mais violentos, onde você pode se assustar e enlouquecer. O eixo da calma fica no seu coração. É aí que Deus reside dentro de você. Então, pare de procurar respostas no mundo. Simplesmente retorne sempre ao centro, e sempre vai encontrar a Paz.”
                                                  Do filme: Comer, Rezar e Amar.




           Júlia queria escrever uma novela. Seria uma novela como um novelo desenrolando vidas, em que se delineia a personagem como um esboço de desenho: gradual e matemático. Menos matemático e mais aleatório, menos nitidez num rosto desconhecido. E ela tinha pressa.

           Regina não tinha ainda sobrenome. Não, ela não era personagem de Júlia. Na verdade trabalhavam na mesma empresa, em prédios diferentes. Não se conheciam. Regina não decidira sobre assumir ou não o nome do noivo. A moça tinha uma centena de detalhes a acertar a seis meses do casamento: o local, a data, a lista de nomes. Tinha o riso de Léo sempre no canto da memória. Era delicado como pular poças de chuva aos seis anos de idade. Era suave e bom. E ela tinha pressa.

          Júlia desenhava o enredo da história alterando as cores, as frases, os nomes, datas e cidades, isto porque o marido revirava os textos e emails no computador, por pura impaciência diante das ausências dela. Júlia sentia a poeira incomodando a garganta e a falta de um copo de água sem gosto de cloro. Havia a menina para buscar à saída da escola, a organização das contas para pagar. Nas viagens ela sempre arrastava as malas pesadas até o carro. Ele nunca dividia as tarefas domésticas. Vamos conhecer Paris? Não, ele dizia - era o ponto final. Em dias frios e doídos havia o chá a ser feito. Ele saía para a caminhada matinal, a empregada levava o chá. Qualquer problema ela chama um táxi e vai para o hospital sozinha - pensava ele, num sacudir de ombros. Saía pausadamente em direção ao parque. Ele nunca tinha pressa.

          O dia que a moça entrou na igreja, todas as luzes se apagaram. Houve um entreolhar no escuro entre os presentes. Como ninguém via ninguém, houve apenas o intervalo da espera. Um espaço entre um ato e outro. Sinal de sorte. As luzes se acenderam e a moça desceu a escadaria em direção à nave nupcial. Havia o perfume de lírios e uma cor dourada que fazia da sala ladeada de véus e flores uma das moradas da casa de Deus. Havia a moça que sorria e via lá no meio do altar o riso de Léo. Nada mais era necessário. Nada.

          Kin, o marido de Júlia, tanto procurou que achou: o email endereçado a um estranho. Estranho a ele, pois havia uma intimidade de língua e dente. A quase carta falava de sentimentos e chuvas, de desencontros e dúvidas. A partir daí o apartamento virou um campo de batalha. Todas as munições contra o inimigo foram lançadas. Kin não se indagou onde estavam suas falhas. Júlia não se lembrava mais do encantamento dos primeiros dias, do som hipnótico, do trino aos ouvidos. Voltava há doze anos atrás e parecia ouvir os conselhos surdos da mãe quando falara pela primeira vez em unir seu destino ao de Kin.   A moça olhou o apartamento arrumado, os livros organizados na estante, as louças sobre a mesa da cozinha. Júlia estava cansada e já não se importava em salvar nada. Pegou as chaves do carro e foi buscar a menina na escola. Mais do que nunca  ela tinha pressa.

          Regina arrumou as malas. Júlia arrumou as malas, os livros, algum mobiliário. Queria apenas sair pelas portas dos fundos, sem gritaria, sem insultos. Regina e Léo pisaram a areia da praia do Caribe e eram o princípio de uma raça Adâmica que estava por vir. Eles eram a criação e a construção do mundo. Havia os frutos do Éden, as flores do Éden, o riso do Éden . A água límpida do paraíso de Deus.

          Quando silenciou-se a artilharia, Júlia foi embora. Arrumou os móveis no apartamento novo e inundou a casa com um Jazz rouco e macio como um abraço. Colocou os pés no sofá, espreguiçou-se em busca de um pensamento qualquer. Ninguém tentaria ler seu riso e seus olhos. Ficou um tempo entregue a única liberdade que existe: a de pensar. Júlia levou a menina à escola e no caminho de volta, lembrou-se que tinha um blog, uma novela por escrever, uma vida por reconstruir. Assistiu ao filme Comer, Rezar e Amar três vezes na mesma semana.

          Kin rugiu por semanas o abandono. Maldisse todas as uniões do mundo, e os campos tempestuosos que atravessou sopraram camadas de cinzas sobre seu templo  interior. Chorou horas no colo da mãe que remobiliou o apartamento. Comunicou aos amigos que não queria mais a esposa e que ele decidira pelo fim de tudo: isto deveria ficar bem claro.

           Às madrugadas, Kin atravessa a avenida e vai  à praça. Há fileiras de soldados em pé - descalços e estáticos. Vestem uniforme de campana e desce sobre eles uma fina chuva de pólen. Trazem uma pequena flor branca na mão direita e ao iniciar o movimento elas voam sobre eles, como um buquê de noiva rodopia um salão iluminado. O movimento é lento como a chuva sobre as cabeças e as mãos abrem contornos de círculos. Kin olha o exército de soldados que erguem a cabeça ao topo com leveza. Está parado em volta da praça, e observa os movimentos do Tai Chi: o avançar e recuar, o ir e vir, olhar a direita e a esquerda.
          È preciso vencer o movimento através da quietude, a rapidez pela lentidão. É preciso vencer a dureza através da suavidade.



Luísa Ataíde

 NOTA: No campo emocional o Tai Chi Chuan ensina a relaxar, a aceitar as negações do ser humano, a administrar os problemas. Uma  excelente maneira de combater o stress. Os movimentos lentos e sincronizados acalmam o cérebro e aumentam a capacidade de concentração , uma verdadeira meditação em movimento.

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