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sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O PRIMEIRO PAI NATAL (1)


TERESA FERRER PASSOS- Lisboa, PT

 Cânone da fé, imagem da mansidão, mestre da continência, chegaste à região da verdade. Pela humildade conseguiste o mais sublime, pela pobreza o mais opulento.” S. João Crisóstomo  



Aquela criança chorava, como Nicolau (2) nunca vira. Olhou-a impressionado. Procurando a causa de tanta tristeza, fez-lhe mil perguntas, mas ela a nenhuma respondeu. A resposta era apenas o choro. Um choro cada vez mais contido. Mais silencioso. Depois parou. E o bispo Nicolau viu-a adormecer de cansaço. De facto, Nicolau passara naquela rua da bela cidade de Bari, pela primeira vez na sua vida. E ficara deveras impressionado com o desalento daquela criança. É que este encontro fortuito, tão inesperado, passava-se precisamente quando começava a cair, ao de leve, a noite que era a antevéspera do Dia de Natal. Vendo a pobre criança a dormir, não a quis acordar e afastou-se para casa, angustiado. Já em casa, mal podia orar a Deus, coisa que fazia sempre com sereno entusiasmo. O choro daquela criança não saía dos seus ouvidos, mais do qu
a tristeza que lhe lembrava tantas outras crianças tristes, a chorar. Faltavam só dois dias para o Dia de Natal. Depois daquele encontro que lhe fez tanta inquietação, acabou por se recolher para enfim repousar. Mas, o sono parecia que não chegava. Não podia adormecer ao pensar na criancinha daquela maneira a chorar e depois adormecida. Exausta. As horas, no sino da igreja, soavam, mas continuavam sempre iguais. Aquela insónia, aquela agitação entre as mantas que o aqueciam e deixavam enregelado, até parecia querer lembrar-lhe qualquer coisa. Faltaria acontecer algo de insólito na esfera do divino, ele que até já estava habituado?! “Será algum recado de Deus, será alguma palavra de Jesus, nestes dias tão próximos da Festa do seu Natal?...”, interrogava-se Nicolau, atormentado por ver que a vontade divina permanecia escondida do seu coração, sempre pronto a recebê-la... Depois, lembrava-se de que, quando era criança também chorava, mas chorava por ser de uma família rica, muito rica... Queria tanto ser pobre, pobre como aqueles meninos da rua, descalços e sem agasalhos, que via pela cidade de Mira, a cidade onde nascera, na distante Turquia. Havia já uma branda luz do amanhecer e o sono não chegava para o bispo Nicolau, nem mesmo que fosse só para sonhar que descobrira o desejo desse Deus, desse Deus tão escondido sempre. E como esse Deus, que era o nosso verdadeiro Pai, sempre se soubera esconder, sob o nome dos profetas, sob o nome de Jesus, sob o nome dos seus filhos mais pobres, dos mais pecadores ou dos mais santos e também sob a forma de uma estrela a indicar o estábulo do Nascimento de Jesus, ou sob a forma de pomba planando no azul sobre o rio Jordão na hora alta do Seu Baptismo. Cansado de tanto pensar naquela noite que já lhe parecia longa demais, Nicolau ouviu o sino da sua igreja. Tocavam as seis horas da manhã! “Tenho de me levantar, depressa”, exclamou muito aflito. “Senão, a missa que celebro às sete… como a vou celebrar?!”. Foi no instante em que se levantava sem ter entendido ainda a vontade de Deus, como tanto desejava, que soou de novo o sino a dar as seis horas da manhã. Ficou intrigado. “De novo, soou de novo?”. Algo de extraordinário estaria ainda para acontecer? De súbito, viu, quase sem acreditar, a estreita faixa de luz da fresta da janela a transformar-se na imagem que o seu coração guardava do próprio Menino Jesus. E como o Menino Jesus lhe sorria, ainda mais lindo do que todas as imagens que a sua memória guardava! E, como estava ali, à sua frente, de carne e osso?! Logo lhe quis sorrir também, cheio de um espanto desmedido… Sem o deixar dizer fosse o que fosse, Jesus antecipou-se. Num sussurro cheio de ternura, disse: “Nicolau, és um coração com tesouros de amor dentro de ti. Observei como te foi terrível ver aquela criança a chorar! Ela tem fome e não tem roupa como tu tiveste! Como eu gostava que levasses a todas as crianças pobres que choram de fome e de falta de agasalhos, os bens de que dispões no teu bispado. Como eu gostava que lhes pusesses em suas casas o que comprarias com essas riquezas precisamente no Dia do meu Natal!”. “Que vozinha pura a dizer tais coisas e coisas tão lindas! Sim, tudo darei, como pedes, meu divino Jesus! E como gosto de o fazer!”, respondeu Nicolau, entusiasmado. Ali estava o Menino-Deus, tão perto dele, no seu próprio quarto, a dizer-lhe as mais lindas palavras que já escutara! Como podia Ele, como podia, dar-lhe tal honra?! Tremia, os olhos muito abertos, as faces vermelhas de ansiedade, mas cheio de uma alegria nunca experimentada. De repente, a imagem do Menino escondeu-se na luz ténue da janela. Então, Nicolau deixou de o ver. Tudo ficou como antes no seu quarto. Pelo contrário, na sua alma nada ficou como era. O Menino Jesus ficou a sorrir no coração feliz de Nicolau, tal como sorria na hora imensa do seu Natal ao agradecer os presentes que os pastores da Judeia e os magos vindos da Arábia e da Babilónia lhe levavam (os cestinhos com mel, figos e uvas, as roupinhas de púrpura com rendas e bordados, o incenso, o ouro e a mirra). Como essa lembrança lhe ficara gravada! E como esta proposta do Menino-Deus a ele dirigida, poderia, dentro dos séculos futuros, ser continuada por aqueles que O seguissem, a Ele, o Deus já não escondido, mas a revelar-se… Poucos instantes depois da divina aparição, o bispo Nicolau reconhecia no Menino Jesus que acabava de lhe aparecer, a criança que chorava naquela rua por onde passara à tardinha, antes de recolher ao Paço episcopal. A criança inconsolável era o Menino Jesus, era Ele mesmo! E estivera ali, a pedir-lhe, a ele, o serviço que Nicolau mais alegria teria em fazer. Sabia agora que apesar de velho iria fazer a coisa mais bela da sua vida: dar todas as riquezas do Paço episcopal às crianças. Então, começou a pensar como o podia fazer sem que as crianças pudessem descobrir que era ele que lhes levava os agasalhos, os doces, e tantas outras coisas que nunca tinham provado? Tudo começaria com a distribuição de presentes às crianças pobres da sua cidade (onde fora escolhido bispo por um acaso Providencial, havia vários anos). Contudo, temia ser reconhecido como autor daquela ideia divina. Isso, não podia ser. Então, congeminou todo o dia como o iria fazer, sem que o povo desconfiasse dele. Ninguém devia saber que não era o próprio Deus-Menino a dar os presentes. De repente, Nicolau pensou que o melhor seria mascarar-se com uma das suas vestes vermelhas e pôr umas muito, muito longas barbas brancas. Ninguém o reconheceria, estava certo. Mas mesmo assim… Todo o cuidado era pouco. Para evitar ser descoberta a sua identidade, devia esconder-se melhor. Porque não fazê-lo de noite, subindo ele próprio aos baixos telhados das casinhas dos pobres com um longo e velho saco que, em parte, o encobriria? Se alguém o visse, pensou Nicolau, só podia perguntar: “Quem será? quem será? só pode ser ladrão… fujamos depressa”. Pelas chaminés das casinhas das crianças pobres, na véspera de Natal, pela noite dentro, deixaria escorregar, pela primeira vez, as prendinhas de Jesus, não dele! E “o Menino Jesus” estaria, pela primeira vez, mascarado de velho de barbas vestido de vermelho, naquele, mais do que nunca, Santo Natal. Na manhã seguinte, no Dia de Natal, as crianças abririam os embrulhos e veriam, com a alegria  a transbordar de seus corações, coisas com que tinham sempre sonhado e poucas vezes provados. A pobreza fora mais forte que os seus apetites e as suas extraordinárias fantasias.  Natal 2012. 

(1) Este conto inspira-se na figura do Pai Natal que o bispo Nicolau teria inventado para construir o verdadeiro Natal das crianças pobres. De um modo sagrado e puro, teria nascido a lenda dessa figura excêntrica e controversa, ainda viva nos nossos dias, que se chama o Pai Natal. Trata-se de uma figura mitológica a que se prendem as crianças para lhe pedirem prendas. A sociedade de consumo apropriou-se deste símbolo cativante para todos comprarem mais coisas, até desnecessárias. O Pai Natal é agora um ícone da sociedade da abundância. Mas quando Nicolau, escondido dos homens, como o próprio Deus, construiu este mascarado Menino-Jesus, estava longe desta evolução dessacralizada, tantas vezes longe de Deus e dos próprios homens.
(2) São Nicolau (Pai Natal, Papai Noel ou Sant(o)a Claus) nasceu, no século III, em Mira (Turquia) e morreu em Bari (Itália) já no século IV, em 342 (6 de Dezembro). À sua morte já era considerado santo. Participou, com posições polémicas, no Concílio de Niceia (325). Com fama de taumaturgo, patrono das crianças e dos pobres, foi e é ainda muito venerado nos países do Leste da Europa. É o primeiro santo da Igreja (Católica, Ortodoxa e Copta) a preocupar-se com a educação e a moral das crianças e de suas mães.

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