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sábado, 3 de março de 2012

O POÇO DOS DESEJOS (CONTO)







“Aquele que segue o caminho do guerreiro, não visa somente a vitória, e sim esclarecer a vida e suas peculiaridades.Deve-se sempre cultivar e aperfeiçoar, traçando a meta, na evolução de si mesmo, descobrindo e definindo seu bushido, ou seja, seu caminho de volta."
Tenzen Ito (Séc. XVII)
 

 
O jovem Samurai Yuzo completava naquele dia dezesseis anos. Olhou pela janela do Castelo Daimyo e avistou a imensa paisagem verde e as montanhas de Kobe que contornavam a paisagem da manhã. O menino  guerreiro habitava a torre central e mais alta da residência aonde se instalavam os cavaleiros cujo ofício e meta de vida era a defesa do Clã. A luz em forma de espada atravessava o corredor do quarto, o que denunciava que há muitas horas o dia amanhecera. O Silêncio nos alojamentos que ladeavam o quarto era grito aos ouvidos: Um Samurai só se entrega ao sono da morte.

Enquanto todos os jovens soldados espalhavam-se entre os jardins, templos e ruelas, Yuzo detinha-se diante do reflexo de seu rosto no prato de água sobre a mesa de pedra. Afundou as mãos na água e as trouxe ao rosto. As gotas desciam dos dedos em movimento rápido e sentiu a umidade fria o despertando para o dia. Há semanas uma voz interior o incomodava. Há dias os rituais do templo se apresentavam sem as cores habituais do arco-íris. Não havia mais sabor no arroz cozido, não havia nenhum sentido na disciplina dos exercícios de guerra. Para ele todas as chamas da casa iluminavam unicamente a porta do calabouço aonde eram guardadas as provisões de inverno.

O rapaz desceu as escadas estreitas aonde a luz ia findando-se à medida que avançava. O menino Samurai não soube quanto tempo esteve sentado nos degraus gelados do subsolo do castelo. As pupilas se misturavam ao escuro e acostumadas à pouca luz  davam-lhe a nítida impressão que este era seu real habitat. Olhou sobre os ombros a pequena abertura na parede perto do teto e lá fora estava o caminho das nuvens. A estreita porção do céu oferecia uma nesga de luz ao quarto escuro. O jovem continuava sentado na base alta dos degraus e as pernas balançavam frente à parede de pedra. Com o arrastar das horas já não via a luz da manhã. Ergueu os olhos sobre os ombros e descobriu na pequena abertura a pouca luminosidade da lua. A voz que  vinha do peito era um uivo de lobo em noite de lua. Sentia o sangue descendo em abundância sob a armadura, mas o Jovem Yuzo não sabia o tamanho da espada que o cortara. As lembranças estavam se tornando branquinhas como areia entre os dedos e distantes como um canto de infância. Um novelo embaraçado de pensamentos e sentimentos  contornava-lhe a alma e o arrastava  para o fundo. O rapaz sentia-se preso entre os degraus de pedras e o brilho da lua.

Deitado sob o braço direito,  viu o pequeno inseto que na  luminosidade  rodopiava a  janela. A minúscula borboleta dava voltas em torno de si como um beija-flor em movimento. O menino olhou demoradamente o bailado dela. Seria uma borboleta ou um grande inseto de luz perdido do grupo? O bichinho alado entrou no calabouço e percorreu os sacos de mantimentos. Passou sobre a cabeça do jovem, rodopiou-lhe os ombros. Yuzo levantou-se rápido tentando alcançar o que era realmente uma borboleta luminosa. O animal inquieto avançou sobre os degraus estreitos que conduziam à saída do Depósito de alimentos. O rapaz corria agora atrás das asas pelos corredores do palácio. O inseto corria entre as árvores do Jardim e o jovem guerreiro esqueceu-se da ferida e do sangue que lhe encharcara as roupas durante todo o dia. A branda luminosidade  mesclava com a neblina da madrugada. O menino caminhava devagar, pois que já não via a borboleta e nem mesmo as árvores. A luz do sol chegava entre a vegetação da planície, vinda lá das altas montanhas que contornavam o lugar. A luz em forma de espada terminava para Yuzo em um poço de pedra. Lembrou-se da estória do poço que seu avô sempre contava à Hora do Chá. Ali estava O Poço dos Desejos dos primeiros Samurais. Há muitos anos o Imperador mandara cobrir o poço sem água, pois que agora servia apenas de berço às aves mortas e meninos desatentos. O jovem aproximou-se do Poço e viu sua imagem refletida. A palidez do rosto denunciava a falta de alimentação e a tristeza. Deteve-se por alguns instantes diante do reflexo que balançava lentamente entre o contorno das pedras. O avô contara que os primeiros Guerreiros Samurais quando dirigiam-se para uma grande batalha olhavam, antes naquelas águas sua imagem refletida. Se não conseguissem visualizar o reflexo seria o caminho inevitável da morte, o que era tão honrado quanto a volta vitoriosa. O Soldado Samurai lançava então sobre as águas um desejo de que qualquer que fosse o seu destino haveria de ser coberto pelo manto da Honra. Buscava pela segunda vez a imagem. Na verdade, explicava o  avô, o poço refletia o destino da alma de um guerreiro, pois que a Morte não é eterna, a Honra sim. O menino olhou mais uma vez seu rosto estampado na água. O brilho da luz do sol em forma de espada estendia-se verticalmente sobre os ombros e a armadura ganhara uma cor dourada. Seu rosto roubara do arco-íris o tom róseo e seus cabelos desciam negros e brilhantes sobre a armadura de guerra. O menino avançou a ponta dos dedos em direção ao poço de pedra na tentativa de alcançar a imagem do valente guerreiro.

 
– É você Yuzo!
 
Voltou o corpo em busca da voz.  Ouviu o silêncio entre as árvores e viu a neblina se desfazendo entre as primeiras luzes do dia. O menino Samurai olhou o castelo Daimyo e a imensa planície verde ao seu redor. A voz interna não era mais um lamento, e decidiu chegar à torre mais alta antes do despertar dos soldados no alojamento. Um jovem e honrado Samurai disparou entre as árvores do jardim do castelo de volta ao seu exército. Muitas batalhas ainda travaria  até caminhar com a espada deitada sobre os braços e entregá-la aquele que criara as planícies, rios e montanhas. 
  
 Luísa Ataíde
 

domingo, 26 de fevereiro de 2012

JOÃO E ADELINA (CONTO)

O tempo acaba o ano, o mês e a hora
A força, a arte, a manha, a
fortaleza:
O tempo acaba a fama e a riqueza
O tempo o mesmo tempo
de si chora:

O tempo busca e acaba onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza
 
Mas não pode acabar minha tristeza
Enquanto não fizerdes vós,
Senhora.”

— Luís de Camões


Conheci Adelina beirando os noventa anos e os olhos azuis eram duas pedrinhas embaçadas pela catarata. Os cabelos longos perdiam-se  numa extensa trança rala que descia, aonde terminava o lenço sobre a cabeça. Adelina, já curvada pelo peso dos anos, quase não sorria: era só uma velhinha. Para nós, os outros, precisava apenas de uma cama encostada na parede, onde prendesse as fotos em marrom e bege. Fotos com histórias cheias de risos e lágrimas. A história de Adelina nascia de um grande mosaico colorido que fui formando ao longo dos anos. Isto não é conversa pra criança, era o que eu ouvia enquanto a porta ia avançando contra o meu nariz. Dele tenho apenas o nome. João Ataíde era apenas um nome perdido nas bocas das tias. A foto pregada na parede da cama mostrava um homem, de média estatura, segurando um livro grosso com papéis saindo pelas páginas. A fotografia retratava um professor de escola primária do norte de Portugal. Eu olhava do outro lado da cama o homem incomodado sob a luz do sol. Minha avó Magnólia dizia que o pai atravessara o Oceano em busca de melhores dias em terras brasileiras, encontrara nas dunas de areia do Espírito Santo a brasileira de olhos azuis.

 Os fatos, que conheci depois vieram embaralhados. Sei que João e Adelina tiveram quatro filhos e que a moça da praia não fora o modelo de mãe e esposa que ele sonhara. Os portugueses que aqui aportaram, no fim do século XIX, eram dotados de tino comercial . Todos os Manuéis e Antônios de minha infância possuíam prósperas quitandas ou padarias. João Ataíde era um homem voltado para os livros- varava as madrugadas sob luz da lamparina, lia e anotava incessantemente. A esposa não passara das carteiras do grupo escolar e não se seduzia por livros com estórias transbordando dentro. Assim foi formando-se, pela erosão dos dias, um imenso abismo entre os dois. De um lado Adelina e seu cesto de peixes, do outro João e os poemas dos livros. Hoje, entendo porque as mulheres da família a apontavam como o avesso do pano. Todas do álbum de fotografia tiveram muitos filhos e enfrentaram altivas os problemas que entram pela porta com a filharada e pouco dinheiro. Todas permaneceram de pé, até o último ato.

Um dia, a moça da praia olhou o professor do outro lado do da sala. Viu apenas um terno puído e um homem franzino dentro. O som lusitano da voz já não lhe era canção ao vento. Sonhara com um português comerciante e uma mesa farta, cortinas que voassem em rendas pela janela e mais que peixe miúdo e guandu sobre a mesa. Distribuiu os filhos entre os vizinhos, prendeu os cabelos numa trança bonita e bateu a porta. 


Neste ponto perdemos João Ataíde. Nunca perguntei às tias o que ele fez da vida. Voltou para o Porto? Chorou as tardes na praia? Continuou lendo Camões sob a luz da lamparina? Na verdade, perdemos João e Adelina. Ela só apareceu diante dos filhos muitos anos depois do fim da Segunda Guerra. Um dia Magnólia, a filha, abriu a porta da casa e lá estava um cesto vazio. Em pé, ao lado do cesto, uma senhora de olhos azuis.

Quando conheci Adelina, beirando os noventa anos, já se chamava Dindinha, usava xale e arrastava um chinelo grande. Dizia meu nome com muitos “is” no meio e falava que eu devia ser professora. Ensinar a ler - dizia, é coisa de gente abençoada, gente de alma boa. Nós olhávamos juntas o jovem avô da fotografia. Acho que ela pensava que aquele imenso buraco na sala poderia nunca ter crescido. Começamos a aprender pela dor e pelo que perdemos. O amor de João e Adelina não morreu, mudou-se para algum lugar neste universo imenso. Acredito, procurando na vastidão do céu pontilhado de estrelas, que um dia ela vai encontrá-lo no pátio da escola e estender-lhe um velho poema português. O rapaz ficará comovido com o interesse da jovem por literatura lusa e trocarão ideias afins. Aprendemos também pelo riso que vem junto com o que reconstruímos.

Luísa Ataíde
9ª Antologia dos AnJos de Prata- Contos e Crônicas, Editora All Print- 2007

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

PABLO NERUDA




Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.


há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

TRADUZINDO MANHÃS




LUIZ MARTINS DA SILVA

Ouço, vai amanhecer. São os trinados.
Daqui a pouco, diante do espelho,
Contemplarei novos antimilagres,
Mais uma ruga, mais um fio alvo.


 Há muito eles vêm se ajuntando.
Um dia, não mais haverá dia.
Serão notas num molho de harmonia,
Acordes desde o harmônio de uma nave.


 Um dia, uma noite, no ar,
O próprio arquétipo, sem as suas coisas,
Flutuando sobre um trigal ao luar.
A profecia da honradez prateada.


Oro, pois ainda é hora, da irreal fantasia.
O tempo! Ah! O tempo, temido algoz!
Manso e implacável rio, descolorindo fios,
Tangendo aluviões de vaidade até a foz.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

PARAMAHANSA YOGANANDA ( 0 iogue de Cristo)




“Não é pela concentração em dogmas que poderemos alcançar Deus, e sim pelo verdadeiro conhecimento da alma… Para mim, não existem judeus, cristãos ou hindus; todos são meus irmãos. Eu presto adoração em qualquer templo, pois todos foram construídos em honra de meu Pai”.

sábado, 28 de janeiro de 2012

CRÔNICA DE UMA PAIXÃO CRÔNICA





BENILSON ATAÍDE


Santa Maria, há tantas. Santa Maria, há uma só. Santa Maria de tantos Josés e inúmeras Marias, há varias pelo Brasil afora. Mas Santa Maria, dos fatos inusitados, de tantos talentos e de gente boa como Zé de Maria, violeiro e ambulante, "retra(r)tista" e amigo, há somente uma: A nossa Santa Maria da Vitória...

Que outra Santa Maria é SAMAVI? ( Pra lhe ser transparente, Homem de Vidro, nunca Vi!) que outra consegue prender tantos andarilhos com uma Só Corrente? João-come-tudo, aqui arrotou com liberdade... Maria Ré-Ré, usou a marcha correta quando percebera que deixava a cidade. Cidade Riso, na boca do povo a qualquer hora, em qualquer hora, porque Zelino Jega Yéia continua vivo e o cirquinho dele agora é itinerante. Está nas "resenhas" no bar de Tampinha, nas esquinas da Leopoldo, na Rua dos doidos, no Malvão, Macambira ou nas anedotas de Salvador. Não Salvador do Mercado Modelo, mas de Salvador do Mercado, somente. é verdade! Esta Santa maria da "Contraditória" é assim: "Rua de cima" na parte baixa da cidade; Seu Alto era baixo; Zé leite, negro: As Carrancas do Mestre, quanto mais feias mais beleza expressam. Grande é pequeno; Pequeno de Maria Alegre é grande na liderança de um coletivo que não pára no ponto.
Quem de sua água bebe, mais sede de viver tem. Quem abusou da Farmácia do Nelito, adoeceu e bateu as Botas..."
(Adeus ingrata: Santa Maria Bateu na Lapa!!!).

Belisca-me oh! Irmã de Morais, desperta-me para compor versos irreverentes que sinceramente, não parece com ninguém. Assim como o céu de Santa Maria que não parece com nenhum outro. È extremamente lindo! Estirado numa esteira, contemplo-o sem compromisso e talvez por isso, adormece em mim uma Poesia que insiste não virar poema. Que bom! Assim , cada qual pode descrevê-la a sua maneira, poeticamente falando. Santa Maria é assim, com a mesma liberdade que os mais velhos põem cadeira na porta, uma moça pula da cama, só de camisola, e sem hesitar, nos mesmos trajes, acompanha a Alvorada da 06 de Outubro pelas ruas da cidade até que , sobre os telhados lá pelo rumo de Sambaíba, surge um clarão anunciando mais um nascer de dia, nesta cidade encantadora que renasce a todo instante para proporcionar a seus filhos e moradores a maior Vitória da existência humana: A certeza de que viver, cercado de amigos, respirando o ar puro desta cidade é mais que gratificante, é SA-MA-VI-TAL!!!

Por essas e outras, confesso-te: "Amar-te-ei de coração,
Oh! Santa Maria, minha Terra, minha Razão!"
Parabéns pelos 96 anos!!! Um forte abraço do filho que te ama
Becê Ataíde


Nota do Blog: Santa Maria da Vitória (Bahia) completou 102 Anos em 2011, a bela crônica do Benilson foi escrita em 2005.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

ANO BOM



JULIO CAPILÉ


Estamos recebendo um ano novo. Um papel em branco para nele escrevermos parte de nossa história espiritual. Estamos consciente de que temos falhado em muita coisa durante o ano que findou. Alguns tiveram desditas, frustações, desentendimentos, dificuldades de toda ordem, mas , se fizerem um balanço entre o tempo de sofrimento e de alegria, estes estão sobressaindo. Tivemos lutas? Mas estamos aqui ainda em pé e com a obrigação de fazes deste ano um ano bom. Os antigos não cumprimentavam dizendo " Feliz Ano Novo" Chamavam o ano entrante de Ano Bom. Isto revelava a esperança  que sempre deve ser renovada de que tudo ocorrerá melhor no futuro.
Temos à  nossa frente trezentos e sessenta e seis dias bem novinhos à nossa  disposição  para enfeitarmos com nossos pensamentos e realizações. Com o conhecimento de nossas falhas anteriores podemos corrigir rumos, a fim de não insistirmos nas mesmas faltas. Mantendo-nos com pensamentos positivos teremos mais oportunidades de acertar. Somos falíveis, mas tenhamos em mente que não temos o direito de sofrer. Somos filhos de Deus e como tal, seus herdeiros. Deus não tem sofrimento e, consequentemente, não podemos herdar isso. Além disso, este mundo não é de sofrimento e sim , de provas e espiações. Portanto ,temos a obrigação de vivermos felizes.

Existem as pessoas que, psicologicamente, são sofredoras naturais. São incorrigíveis. Sofrem na alegria e na dor. São proprietárias das nosologias, cujos sintomas e desconforto, sentem. Dizem "a minha gastrite", "minha enxaqueca" . Em vez de dizerem que sentem a dor, dizem: sofro de dor no estômago, na coluna, nas pernas.  Portanto estão ligadas ao sofrimento e, dessa forma. às dores, aos desconfortos e, dessa forma, o mal estar aumenta. Se pensarmos sempre positivamente e usarmos o verbo sentir em vez de sofrer, minimizaremos todos os males. O sofredor vive pensando sempre em si mesmo e pesquisando sensibilidades. O não sofredor não dramatiza os males de que é acometido, e, assim, não sofre, ou por outra, suporta melhor as dores. não as apregoa e nem se queixa. O sofredor é queixoso.

Portanto, pensemos no bem e escrevamos as páginas deste ano com atos felizes , esforço para errarmos menos, boa vontade para com todos inclusive para com "os que nos maltratam e caluniam". Procuremos servir sempre, ter paz interior, evitar pensar no mal, praticar a caridade em todas suas nuanças, ter alegria de viver, procurar transmitir alegria em todos os ambientes em que estivermos, lutar por compreender nossos semelhante, usar só palavras que estimulam e confortam e amar tanto quanto possível a todas as pessoas. Se assim procedermos teremos no final um ano bom.

Deus é Felicidade, é Abundância, é Vida Plena. Portanto vivamos felizes. Temos a grande felicidade: somos filhos de um Pai que não tem defeitos!


Nota do Blog:  Júlio Capilé é um jovem médico de 96 anos.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

ACEITAÇÃO



Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.

                                       CECÍLIA MEIRELES

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

MINUDÊNCIAS DIVINAS



Luiz Martins da Silva


Já por mim, é do meu feitio gostar de certas nódoas,


Postas como flagrar quando Deus desce das maiúsculas


E vem cear no orvalho das carícias sobre musgos,


Delícias de liquens sobre rugosas superfícies.


É nesses momentos de incontido júbilo


Que olho para os céus e, nos desenhos de nuvens,


Cismo de ver como entes voláteis, mas insinuantes,


Combinam devaneios de enviar para cá as substâncias.


Eu escrevo estas lereias como se fossem homilias


De um novo, mas velhíssimo culto do bucólico,


Afeito a contemplações de texturas caóticas,


Mas que são dos oráculos reveladoras trilhas.


Dos oceanos emanam atenções magnânimas,


Por vezes, pavorosos duelos de titãs.


Mas que no seu arrebatamento espetaculoso


Apenas revolvem e reciclam intimidades ínfimas.


N’outro dia, alguém sabendo-me desses bobos:


“Olha, fotografa, você que gosta desses troços...”.


Ora, eram radiantes recém-nascidos cogumelos,


Esgueirando-se inaugurais de uma tampa de esgoto.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

BETELGEUSE- A LUMINOSA DE ÓRION (conto)




 A constelação de Órion apresenta a forma de um quadrilátero com as Três Marias no centro. O vértice nordeste do quadrilátero é formado pela estrela avermelhada Betelgeuse, que marca o ombro direito de Órion. O vértice sudoeste do quadrilátero é formado pela estrela azulada Rigel. Betelgeuse e Rigel são as estrelas mais brilhantes da Constelação.



Houve um tempo em que a Astronomia confundia-se com a Astrologia. Os mapas findavam-se em contornos retos e as estrelas, ainda pagãs, espalhadas na vastidão noturna faziam do céu um espetáculo a quem quisesse ver. Os sacerdotes da Pérsia que não eram reis, santos ou magos, pressentiram que a grandiosidade da luz simbolizava o nascimento, em algum lugar do Oriente, do rei de todos os reinos. Conta-nos o Livro Sagrado que munidos de incenso, ouro e mirra seguiram a estrela, que parou sobre a casa onde dormia o menino-Deus. Para alguns céticos, Gaspar, Melchior e Baltazar, talvez nunca tenham empreendido a viagem até Belém e a estrela, para o Evangelista, simbolizasse a fé, assim como o ouro simbolizava a riqueza, o incenso a espiritualidade e a mirra a imortalidade. Contudo, astrônomos, posteriormente, confirmaram a presença do fenômeno luminoso, à época, embora os calendários se contradigam na precisão da data. O certo é que aquela poderia ser a estrela mais brilhante da constelação de Órion e cujo brilho para realmente ser visto, necessário faz-se que fechemos os olhos e sigamos o pulsar das batidas do coração. Uma vez misturados os sentidos, poderemos ver por todos os poros do corpo, ouvir pelo êxtase das pupilas e sentir o toque acre ou doce da pele entrar pelo centro da cabeça e escorrer como rio caudaloso por todos os órgãos do corpo.


 ESTAÇÃO DE PASSAGEM
Mintaka é uma das três entradas da Estação de Passagem a sítios mais distantes. As manhãs são envoltas em neblinas e uma chuva fina cai incessantemente e incomoda quando toca os ombros. São lágrimas das mulheres, as mães, cujas silhuetas desenhadas pela parca luminosidade, formam um círculo extenso que contorna o cinturão de Órion. Eles, por sua vez, chegam em pequenos grupos. São muito jovens e falam pouco ou quase nada. O véu do esquecimento deixou-lhes um vasto buraco negro na memória, contudo um rasgo pequeno deixa-lhes a última cena gravada, num vai e vem contínuo. Se levantarmos a ponta do véu a hipnose individual cai ao chão como pequenos cristais e a cena, antes fragmentada, ganha movimento e vida.


A moça olha para trás subitamente como se ouvisse o ruído forte de frenagem de pneus. Os olhos rendem-se ao pavor da luz do farol que avança em grande velocidade. O baque forte do encontro dos carros quebra o silêncio que havia em volta. Ela sente o corpo arremessado pra frente e cai. Os outros caminham ao redor e presos ao ímã de sua própria fatalidade, seguem em frente. Ela chora em demasia e se contorce de dor.




DEZEMBRO


Quando as luzes intermitentes do planeta anunciam a comemoração do nascimento do Cristo, as ruas vestem-se de cor e sonhos e as lojas os vendem embalados em laços coloridos. Os anjos da misericórdia sopram sobre as casas uma mistura analgésica de fraternidade, esperança e fé. Contudo, em meio ao som dos cânticos natalinos, da urgência das lojas e festas há um som abafado de dor que prende a tarja do luto como uma guirlanda negra presa à entrada das casas. De toda saudade pelas vítimas da violência urbana, dos acidentes de trânsito, das intempéries climáticas, entre as vítimas das escolhas indevidas, está o soluço forte das mães dos jovens que habitam a Constelação de Órion. Que canto lhes alegraria a alma? O que poderia interromper subitamente o punhal arremessado ao peito?

Em Mintaka, Alnilan e Alnitaka, as Três Marias do cinturão de Órion, era noite de Natal. A Estação de passagem e apoio aos jovens, que deixam bruscamente suas casas e não mais retornam, foi invadida pelo som de harpas e flautas. As vozes dos cantos gregorianos, contrariando a ordem natural da rota de mensagens, acordaram os anjos e as almas. O som veio de algum lugar do planeta, cruzou as paredes de pedras, dançou sobre planícies e rios e subiu ao céu. Os jovens chegaram às janelas dos hospitais e olharam a noite, o tabuleiro estrelado que se abria sobre suas cabeças. Os anjos trabalhadores do Cinturão de Órion ouviram o som miraculoso dos cânticos. Não havia a sombra das silhuetas no portão de entrada e a chuva fina cessara subitamente. Além da Nebulosa, além do cintilar dos pingentes de brilhantes, as mulheres dormiam. Betelgeuse, uma das luminosas da Constelação emitia seu esplendor sobre a noite escura. A estrela erguia seus raios como uma torre impera sobre um reino de beleza e luz.

Chegaram: Gaspar, Melchior e Baltazar. Um deles era tão jovem quanto os meninos de Órion. O do meio era um homem feito e o último tinha barbas brancas e uma harmonia que irradiava, quando ele olhou tudo em volta. Logo depois, chegaram as mães. Elas vinham de chinelos e roupas de dormir. Algumas traziam um rosário entre os dedos, outras apenas um livro pequeno. O canto dos monges viajava entre os ouvidos e fluía por todos os poros do corpo. Os jovens, das janelas, olhavam lá embaixo: os camelos, os sacerdotes da Pérsia e o riso das mulheres. Ali, naquele momento, era possível morrer apenas a saudade.


Primeiro eles mandaram bilhetes e cartas. Os papéis voavam das janelas e as mães corriam em direção a eles. Elas acenavam aos rostos conhecidos e riam. Um riso cristalino e farto como um rio. Os meninos desceram as escadas em direção ao redemoinho de papéis. Os três reis reconheceram a estrela que os conduzira há muitos anos, sobre mares, montanhas e desertos. Betelgeuse atravessou as fronteiras da galáxia, e o Criador envolto num novo projeto de ampliação do Universo sorriu por breve instante. Havia a chuva de pingos cintilantes, sobre os visitantes de Órion.


Luísa Ataíde

domingo, 4 de dezembro de 2011

ELEGIA DOS SINOS


LUIZ MARTINS

Os sinos, porque se dobram,
No bronze de nossas vidas,
Nas bênçãos de nossas sinas,
Nas ondas de nossas auras,


Quando soam, soam bem,
Para o bem de nossas almas.
E aos aldeões, bem mais calmos,
Emendam salmos: amém, amém.




Sinos, campainhas, chocalhos...
Tantos badalos ecoam,
E logo os céus nos perdoam
Do quanto fomos daninhos.


Mesmo que assustem andorinhas
E os pombos dos torreões
Que sempre repiquem os sinos
Ao fundo dos corações.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

SONETO DA DESILUSÃO


Osmar Aguiar

 Na vitrola, o vinil gira empenado
Conduzindo a agulha de diamante
Que arranha num tom desafinado
A cantiga de um amor tão dissonante.


 O ruído rouco da rabeca apavora
O peito já desprovido de harmonia
Ecoando o sentimento que outrora
Rimava e ritmava em melodia.


 Não posso eu cantar outro refrão
Se já não tenho nenhum repertório
que me torne um grande regente


para transformar esse amor ilusório
em uma ária de tom eloquente
sem medo e nem  desilusão.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

LUIS DE CAMÕES



"Que dias há que na alma me tem posto

Um não sei quê, que nasce não sei onde,

Vem não sei como, e dói não sei porquê."

domingo, 13 de novembro de 2011

AMOR E TEMOR


"O perfeito amor lança fora o temor". (I JOÃO, 4:18.)

LUIZ MARTINS DA SILVA

Com pigmentos de candura me tinjas neste Dia,
De adornar minha nudez diante do Eterno.
Por que temer feito o cordeirinho de uma fábula,
Acaso não terei direito a mãe na hora do Juízo?


 Que imagens me sagrarão perante o crivo do Divino,
Carrasco desde sempre, de rigor emoldurado?
Solene, severo, sentado no trono das degolas:
Aguarda-me um Deus algoz brandindo a sua espada.


 Oh! Quantos filhos! Cabeças e sentenças!
Na ala dos diletos, ternura e compaixão;
Aos arredios da doutrina, castigo e padecimento.


Quanta vida dissipada! Agora, arrependimento!
Mas, eis que Ele me unge com as suas asas de bálsamo
E beija a minha face aspirando aromas de inocência.

sábado, 12 de novembro de 2011

CHICO XAVIER


A gente pode morar numa casa mais ou menos,
 numa rua mais ou menos, numa cidade mais ou menos,
e até ter um governo mais ou menos.


A gente pode dormir numa cama mais ou menos,
 comer um feijão mais ou menos,
ter um transporte mais ou menos,
 e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro.

A gente pode olhar em volta e sentir que tudo está mais ou menos...

TUDO BEM!

O que a gente não pode mesmo, nunca, de jeito nenhum...

é amar mais ou menos, sonhar mais ou menos, ser amigo mais ou menos,
 namorar mais ou menos, ter fé mais ou menos,
e acreditar mais ou menos.

Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos.